Novo erro para corrigir erro antigo | Para Ferreira, a marcação a...
Edição 368
As disputas do sistema de previdência complementar, e particularmente da Previc, com o Ministério da Fazenda saltam aos olhos, seja ao equiparar os fundos de pensão às instituições financeiras na Reforma Tributária, seja condicionando o encaminhamento de uma proposta de atualização da Resolução 4.994 ao Conselho Monetário Nacional (CMN) à aprovação prévia de mecanismos de marcação a mercado dos passivos dos planos previdenciários. Paralelamente, um documento da Anapar avalia que o Grupo de Trabalho criado pelo presidente Lula para discutir os pontos defendidos pela equipe de transição que atuou na área de previdência é improdutivo e esta tomado por “tecnocratas incrustados no poder público”. Conversamos sobre esses pontos com o ex-superintendente da Previc, José Roberto Ferreira, que em grande parte compartilha da visão da Anapar. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Investidor Institucional – Como você, que já esteve na Previc, analisa as dificuldades que enfrenta a Previc para avançar pautas importantes?
José Roberto Ferreira – A minha avaliação é que na Previc está acontecendo algo que ocorre com o governo em geral. Pela necessidade de se ter uma composição política mais ampla, o governo acabou incluindo diferentes grupos, cada um defendendo o seu propósito, o seu entendimento, sem um alinhamento maior. Isso frustrou muitas expectativas que se tinha.
Mas no caso da Previc, os conflitos são com o próprio Ministério da Fazenda, comandado pelo Haddad, um petista.
Alguns assuntos não se movem apenas na esfera das lideranças. Às vezes se movem em níveis inferiores ao dos titulares. Na minha opinião, o que está acontecendo nesse momento é que o governo está sendo conduzido e superado pela tecnocracia em vários aspectos. As teses têm sido direcionadas para princípios tecnocráticos.
Foi isso que impediu o avanço do Grupo de Trabalho da Previdência Complementar?
O GT foi instituído em 1º de junho do ano passado para um período de 180 dias, e vencidos esses primeiros 180 dias o GT foi renovado por mais 180 dias e em seguida morreu. Sem ninguém saber. Deixou de existir a partir de junho do mês passado sem comunicar nada a ninguém, nem os componentes da Subcomissão 1, da qual eu faço parte, foram informados. Tinha oito, nove meses, que não havia mais função dessa subcomissão. A entrega do GT foi mínima.
Da pauta inicial do GT, que refletia o documento criado pela equipe de transição, o que avançou?
O principal avanço foi a Resolução 59, de retirada de patrocínio. Mas tem outros temas que não avançaram, como a Resolução 30, que trata dos resultados dos planos, além das questões relacionadas ao PGA (plano de gesto administrativa), que têm sido bastante debatidas pela Abrapp.
Porque não avançou a discussão de mudanças na Resolução 30?
Na verdade, esse tema sequer foi colocado à mesa, e aí entra a questão da tecnocracia que eu menciono. A discussão não pode ser só no âmbito técnico, ela tem também um âmbito político e social. E porque a Resolução 30 precisa ser revista? Ela é tecnicamente bem feita, mas os seus efeitos têm afetado negativamente a sociedade. Você tem, desde 2016, uma sucessão de planos de equacionamento e em vários deles há assistidos recebendo benefício igual a zero há mais de um ano. Isso não é razoável.
Teria que superar a visão da discussão técnica para mudar isso?
É isso, a tecnocracia não se distancia das questões relacionadas ao fundamento técnico, só vê isso, então ignora a realidade social. Nessa discussão, a primeira forma de se discutir a revisão da Resolução 30 seria reconhecer a realidade desses planos e discutir, por exemplo, um diferimento facultativo dos planos de equacionamento por 12 meses.
Isso não agravaria os déficits?
Sinceramente, um prazo de diferimento de 12 meses não ia trazer qualquer impacto significativo em termos de agravamento do déficit dos planos. Mas não houve essa discussão, a composição do próprio governo entendeu que isso não seria possível e a proposição não avançou nem no diferimento facultativo das contribuições.
Mas foi aprovado o diferimento dos resultados de 2022, né?
Não, isso foi uma resolução própria, seguindo o que já tinha acontecido em 2021. Então não inovou, simplesmente estendeu o tratamento dos resultados de 2021 para 2022. E essa minuta sequer saiu da subcomissão 1, ela foi apresentada no CNPC.
Em relação à Resolução 59, que foi a principal entrega do GT, mesmo aprovada ela tem sido muito contestada pelas patrocinadoras. Porque ela desagradou?
É verdade, ela tem sido contestada na Justiça particularmente em relação à retroatividade da sua vigência, né? Isso resultou no arquivamento de 72 processos de retirada de patrocínio, e então qualquer processo que retorna agora é proibido. Mas foi uma norma que avançou muito, sob o aspecto da evolução normativa, embora realmente tenha desagradado bastante aos patrocinadores.
Predominou a visão da Anapar na aprovação dessa norma?
Veja, sob muitos aspectos a Resolução 59 é uma norma muito alinhada às expectativas da Anapar, beneficiando participantes e assistidos, embora nem tanto em relação às expectativas da Abrapp e menos ainda da Apep. Porém a Apep participou de todas as discussões e até, eventualmente, apoiou muitos pontos dessa norma. Mas é claro que o patrocinador ficou com uma situação pior, né?
Outro tema que tem dado o que falar são as divergências da Previc com a Fazenda em relação à marcação dos passivos a mercado, exigência da Fazenda para fazer avançar as alterações da 4.994. Por que isso está acontecendo?
Na minha opinião, está se defendendo um erro conceitual para consertar outro erro conceitual. Quando eu falo em tecnocracia, sem querer me prender a esse ponto mas ele é fundamental, nós temos uma estrutura tecnocrática no Estado, independentemente do governo de plantão, que está prevalecendo em relação às questões de natureza política e de governança de Estado. Essa estrutura tecnocrata é absolutamente alinhada e alimentada pelo sistema financeiro, particularmente pelo sistema bancário, porque é o que traz o maior tipo de preocupação, que tem que ter maior solvência, cujos fluxos são de curtíssimo prazo. Só que isso está contaminando a discussão em todos os outros ambientes, por exemplo em relação à exigência de marcação a mercado, primeiro nos ativos e agora nos passivos, dos fundos de pensão.
Pode explicar melhor esse raciocínio?
Não faz o menor sentido essa insistência da Fazenda em marcar todo e qualquer ativo de fundo de pensão a mercado, visto que o seu fluxo financeiro é de longo prazo. Eu vou dar dois exemplos: o governo federal criou, no âmbito do Tesouro Direto, dois títulos, o Tesouro Renda Mais e o Tesouro Educa Mais, um voltado para aposentadoria e outro para educação. O Renda Mais tem um pouco mais de tempo de criação, foi criado em fevereiro do ano passado, e tem títulos marcados até 2084. Esse título, levado até o vencimento, traz a rentabilidade prometida chova ou faça sol. No entanto, como esse papel também é marcado à mercado, e tendo em vista a volatilidade natural de mercado e o prazo que é muito longo, todas as séries, de todos os vencimentos, apresentam rentabilidade negativa no mês e nos últimos 12 meses. A última série, que é de 2084, apresenta uma rentabilidade negativa de menos 28% nos últimos 12 meses. Eu pergunto, isso quer dizer que quem operou está perdendo 28%? Não! No vencimento, ele vai receber exatamente o que contratou!
Como explicar isso para quem não tem educação financeira e previdenciária?
Esse é o ponto, não dá. O cara fala, espera aí, quer dizer que eu estou perdendo 28% em 12 meses? E então ele vai sair e ao sair vai realizar o prejuízo. Se você olha o Tesouro Educa Mais é exatamente a mesma coisa, só que lá você não tem 12 meses ainda. Então, uma série de 2045, por exemplo, já acumula no ano uma perda de 8,76%. Mas não é uma perda financeira, é uma perda contábil.
Como se transporta essa discussão da marcação a mercado do ativo para o passivo?
Pois é, aí vem o outro equívoco conceitual. Para corrigir a falha na marcação a mercado do ativo, que precifica a preço do dia ativos de longo prazo que não vão ser vendidos, adota-se a tese da marcação a mercado também do passivo, precificando a preço do dia a mesma taxa de juros que é utilizada na avaliação atuarial, independentemente da carteira. Quer dizer, se você está errando na marcação do ativo então você erra também na marcação do passivo para que os dois erros se anulem.
Qual o efeito disso nas carteiras das EFPCs?
Você teria uma volatilidade absurda e desnecessária no ativo, porque ela é contábil e não financeira, e no passivo vai ter que fazer provisões matemáticas calculadas e calibradas para o céu e para o inferno a cada ano, de uma forma absolutamente artificial.
Por favor, dê um exemplo
Uma carteira que está comprada a 14% ou 15%, por exemplo, vai dar no vencimento o retorno de 14% ou 15% que você contratou, não importa se a Selic está a 10,5%. Não, mas eu quero marcar a 10,5%, tanto o ativo quanto o passivo. Legal! Então você vai trazer a valores presentes uma coisa que vai acontecer daqui a 10, 15, 20 anos, vai gerar um resultado artificial só para ficar alinhado com o mercado financeiro. Essa discussão não faz nenhum sentido.
Quem defende essa tese costuma usar como exemplo o Canadá, que dizem, a adota.
Usam vários países onde predominam mecanismos de previdência de curto prazo, diferente da nossa previdência fechada cuja fundamentação, regulamentação e princípios são completamente diferentes. Nos casos de previdência de curto prazo até vale a marcação a mercado, pois os saques são muito rápidos.
É caso da nossa previdência aberta?
O apelido de “previdência aberta” ou “previdência fechada” é uma questão de natureza legal, mas o que importa para todos os fins, seja contábil, de precificação, inclusive tributários, é o prazo do fluxo. Se você tem fluxo de longuíssimo prazo, de 10, 15, 20 anos, o tratamento tributário, a marcação a mercado ou na curva, tudo deveria ser definido respeitando esse prazo. Não importa se é previdência fechada, PGBL ou VGBL. Se você tiver PGBL ou VGBL acumulando por 30 anos, não tem por que ter um tratamento tributário pior ou melhor do que a previdência fechada que acumula por esse prazo também.
E a questão das alterações na Resolução 4.994, qual a explicação para estar sendo travada pela Fazenda?
O que está acontecendo, me parece, é que o nosso intuito de atualizar, de aperfeiçoar essa regulação tem a anuência da Fazenda desde que a discussão da marcação a mercado dos passivos prospere. Fica muito difícil, porque é uma interferência, na minha opinião, absolutamente equivocada de uma pasta que não tem qualquer tipo de afinidade ou governança em relação a fundos de pensão.
Que áreas, na sua opinião, poderiam ser contempladas nessa modernização da 4.994?
Nosso sistema tem oportunidades de avançar em temas como infraestrutura, além de ter uma discussão mais aprofundada sobre investimentos no exterior. Outro tema importante que poderia e deveria ser colocado é o das criptomoedas. São assuntos atuais, relevantes, que precisariam ser trazidos para a regulação.
Voltando um pouco às dificuldades que a área da previdência complementar enfrenta com as áreas técnicas do governo, salta aos olhos a inclusão dos fundos de pensão como instituições financeiras na primeira versão da reforma da previdência. O que aconteceu?
Veja, a Fazenda está fazendo o que lhe cabe, que é buscar a maior tributação possível, esse é o papel da Fazenda, mas não houve um alinhamento dessa pasta com a pasta da Previdência, pelo menos não no nível dos seus titulares, para que a questão previdenciária fosse tratada de forma diferente. Perceba que a proposta original da reforma veio do governo, e quem teve que brigar até o final para que os fundos de pensão pudessem ser tratados como tal, e não como instituições financeiras, foi basicamente a sociedade civil, incluindo Abrapp, Apep e Anapar, junto com Previc e parte do Ministério da Previdência e, em menor escala, a Secretaria de Previdência.
E a briga ainda não terminou, agora a discussão vai ao Senado. O que pode acontecer?
Nessa discussão da Câmara ficou claro que o sistema é absolutamente órfão de qualquer representação. Qual é a representação do nosso sistema na área parlamentar? Ela não existe! Veja, na solenidade de 15 anos da Previc, que ocorreu na Câmara de Deputados, o único parlamentar presente era a deputada Erika Kokai, que prestigiou o evento porque ela presidiu a mesa. Não havia outro parlamentar. Qual o sentido disso? O sentido é que o sistema está sem representação parlamentar num país no qual as coisas dependem da legislação. E isso não é de agora, já ocorre há mais de uma década!
O que você está dizendo é que o sistema está enfraquecido, com uma parte do governo trabalhando contra, e sem base parlamentar de apoio. Como voltar a crescer nessa situação?
Acho que tem a ver com alguns pontos que tocamos antes, de impedir que o sistema seja tomado pela tecnocracia. Veja que eu não estou falando que a parte técnica não importa, seria um absurdo falar isso e claro que eu não defendo isso. Só que a tecnocracia, o princípio técnico, que em todo lugar do mundo é um freio para impedir desastres, no Brasil está sendo um acelerador. Se você está quebrando os planos, está fazendo com que as pessoas saiam dos planos por conta de uma metodologia de contabilidade que é meio, não é fim, nós vamos insistir nessa tese? Me parece que esse é o ponto.
Algumas mudanças aprovadas recentemente, como a adesão automática aprovada no início do ano, pode ajudar os planos a voltar a crescer?
Na minha opinião, o único efeito da adesão automática vai ser resolver um problema da previdência complementar de serviço público, já que a Funpresp tem adesão automática e os estados e municípios não. Agora, para planos patrocinados não sei se será tão útil. Primeiro, porque você não tem criação de planos patrocinados há uma década, e segundo, quem disse que os patrocinadores atuais desejam o ingresso automático de novos participantes, sendo que hoje muitos patrocinadores vem a previdência como uma despesa.
Você avalia que terá um efeito pequeno sobre o sistema?
Basta ver a demanda, qual a demanda que está tendo para alteração de regulamento de forma a incluir a adesão automática? Mínima, para não dizer nenhuma. Essa discussão da adesão automática começou em 2013, quando eu estava na Previc, mas naquele momento ainda se falava em novos planos, em novos patrocínios. Isso acabou, não se tem notícia de novos planos patrocinados exceto no âmbito da previdência pública.
Outro tema que o sistema julga importante que tenha definições claras é o do processo sancionador. Porque isso não avançou?
Esse é um assunto que tem mais de décadas de discussão, cuja previsão de definição era que ocorresse ainda esse ano, mas você percebe que não há uma discussão aberta em relação ao tema. Então, o risco é que venha uma proposição já formulada e que, eventualmente, traga surpresas. Isso, na minha opinião, é muito ruim para o sistema, porque gera insegurança jurídica.