Não há trabalhadores de segunda classe

Edição 130

Ricardo Berzoini, ministro da Previdência

Cabe ao novo ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, uma das tarefas mais difíceis dentro do governo Luiz Inácio Lula da Silva: a de reformar a previdência social do país, implantando uma previdência única que nivele benefícios de aposentadoria dos trabalhadores da iniciativa privada e dos funcionários públicos. Falado assim parece ser uma coisa relativamente simples, mas essa é talvez a reforma mais complicada de se fazer no país. Que o diga o presidente Fernando Henrique Cardoso, que por várias vezes tentou, sem êxito, dar passos nessa direção. Nas próximas páginas, publicamos os principais trechos de uma conversa de Berzoini com Investidor Institucional, onde ele fala da sua proposta de reforma e outros temas:

Investidor Institucional Qual o pior problema da Previdência, são os gastos excessivos ou a arrecadação insuficiente?
Ricardo Berzoini – Eu diria que são as duas coisas. No setor do regime geral, nós temos hoje uma diferença entre pagamentos e arrecadação projetada para R$ 20 bilhões em 2003. Então, nós vamos estruturar uma grande operação para tentar melhorar a arrecadação através do combate à sonegação e simultaneamente fazer uma operação para reduzir as fraudes.

IIQuanto seria possível economizar com o combate às fraudes?
RB – Nós não temos uma dimensão exata desse montante, mas dá para intuir, a partir das informações que já existem no Ministério e das denúncias que nos chegam de trabalhadores e sindicatos, que o número de fraudes não é pequeno. Para reduzi-las, é preciso aumentar a segurança do sistema de informática, melhorar o controle na concessão de benefícios e evitar que pessoas estranhas ao quadro do INSS tenham o poder de conceder benefícios, isso no regime geral. Já no regime próprio, a questão fundamental é outra: ali, a questão fundamental é que as contribuições dos ativos e as contribuições teóricas dos entes (união, estados e municípios) são insuficientes para fazer frente à despesa, aliás sequer se aproximam da despesa.

IIQual é o déficit da previdência dos funcionários públicos?
RB – Na União, as despesas projetadas para 2003 são da ordem de R$ 34 bilhões, com pouco mais de R$ 4 bilhões de arrecadação, o que dá um déficit projetado de R$ 30 bilhões. Se nós considerássemos 20% sobre a folha como contribuição do patrão, que nesse caso é o governo, esse déficit cairia para R$ 22 bilhões. Portanto, há um claro desequilíbrio entre benefícios e financiamentos. Então, nós precisaríamos reformar o sistema em busca de um equilíbrio, que pode não ser imediato por causa do estoque em curso mas pelo menos de um equilíbrio no médio prazo. Dependendo do conteúdo da reforma, esse médio prazo pode ficar mais longe ou mais próximo do momento atual.

IIA reforma prevê também cortes de benefícios, como forma de reduzir as despesas?
RB – Não, cortes não, o que nós temos que pensar é se a aposentadoria dos funcionários públicos deve ser integral para todas as faixas de renda. A aposentadoria integral para uma faixa de renda baixa normalmente preserva a sobrevivência do trabalhador, mas a aposentadoria integral para uma faixa de renda alta pode estar preservando o poder de poupança e de consumo elevado, que não necessariamente é a obrigação de um fundo previdenciário público. Pode até ser obrigação de uma previdência complementar, mas não necessariamente de um fundo público. Então, o nosso entendimento é que um regime único, com teto de benefício igual para a iniciativa privada e o setor público, poderia dar esse rodapé do sistema, que seria a parte mais social das garantias, e a partir daí haveria uma complementação. Isso já ocorre entre as empresas privadas e entre as empresas estatais, onde o regime da CLT registra os trabalhadores no INSS e os fundos de pensão complementam os ganhos na aposentadoria, mas quase nunca com benefício integral.

II – Nesse caso, as alíquotas passariam a ser cobradas apenas sobre o teto?
RB – A alíquota para o sistema básico é sobre o teto, as alíquotas complementares, que iriam para o fundo de pensão, evidentemente teriam que ser negociadas entre o empregador público e o empregado, estabelecendo o tamanho da contribuição ao tamanho do benefício pretendido.

IIHoje, no sistema privado, a alíquota para o empregado é sobre o teto, mas a alíquota para o empregador é sobre o total do salário. Isso pode mudar?
RB – É óbvio que nós não podemos ter alíquota para o empregado acima do teto, mas a alíquota para o empregador, se o sistema for unificado, evidentemente que teria também que ser beneficiada.

IIAs novas regras valeriam para todo tipo de funcionário público, incluindo os militares e o judiciário?
RB – Eu recebi uma orientação expressa do Presidente da República dizendo que os militares tem uma situação civil diferenciada, seus direitos são restritos por um artigo da Constituição, o art. 52, que prevê uma série de restrições aos seus direitos e por conta delas nós devemos manter um regime especial adequado. No entanto, nós não nos absteremos de analisar a situação atual da previdência dos militares e de propor mudanças, de comum acordo com o Ministro da Defesa. Por quê? Porque hoje a situação dos militares representa R$ 11 bilhões dos R$ 30 bilhões de desequilíbrio que temos no setor público.

IIEles serão a única exceção?
RB – Se depender de mim, sim!

IIE as chamadas carreiras de Estado, que incluem auditores, judiciário, etc, essas não teriam exceções?
RB – Se você pensar em fazer uma regra única com várias exceções, na prática não será única. A minha previsão é que nós vamos trabalhar com o sistema único. Evidentemente, o governo tem suas condições políticas, vai avaliar o momento adequado, vai avaliar qual é o seu projeto estratégico de previdência. Mas, em relação ao sistema único, eu creio que ele deva excluir apenas aquelas categorias que têm diferenciações constitucionais em relação à situação civil. Ou seja, os militares, que não têm direito a habeas corpus, tem restrição a sindicalização, tem uma série de regras disciplinares específicas, então eles têm realmente uma situação diferenciada.

IIVoltando à questão do teto, de quanto deveria ser esse teto que hoje está por volta de R$ 1.500?
RB – Eu acho que ele pode ser recuperado, houve um achatamento nos últimos anos, mas para recuperar deveria ter um critério. Eu defendo, genericamente, que se atrelasse a recuperação do teto previdenciário a uma evolução do crescimento do PIB. Assim, além de aplicar o fator de correção dos benefícios, o teto poderá incorporar também o repasse de um percentual de crescimento do PIB. Por exemplo, se o PIB crescer 4% ele cresceria 4% acima da inflação.

IIMas ele partiria do atual teto?
RB – Sim, do teto atual.

IIO regime básico continuaria de repartição e o sistema complementar seria de capitalização?
RB – É o que eu defendo. Acho que a repartição do sistema básico é um princípio até de solidariedade da sociedade com os aposentados e o de capitalização é para quem quer, precisa ou deve ter mais do que o teto.

IIE o plano dentro do regime complementar seria de CD?
RB – Essa é uma questão polêmica, eu pessoalmente defendo CD mas acho que nós podemos discutir com os servidores. Quem sabe encontremos até uma fórmula de fatiar, podemos fazer um plano BD para cobrir até 40 salários mínimos, ou talvez menos, até uns 20 salários mínimos, e a partir daí teríamos CD.

IIA sua idéia de ancorar a reforma da previdência no conceito de direitos acumulados, que é uma coisa meio pro-rata, segue um pouco a lógica do fator previdenciário. Foi esse o modelo?
RB – O fator previdenciário também estabelece uma sistemática que pretende datar o tempo restante. Acho que, no fundo, a idéia original é semelhante. A diferença é que o fator previdenciário está aplicado ao regime geral, que no nosso entendimento tem um espaço para um equilíbrio maior, uma vez que, excluídas as aposentadorias rurais, a diferença entre arrecadação e benefício pode ser eliminada simplesmente com uma boa política de combate à sonegação.

II Com relação a idade de aposentadoria, você imagina que esse tema deveria ser reintroduzido no debate?
RB – Acho que isso já foi debatido no passado e não avançou. Creio que nós devemos priorizar a reforma no regime próprio dos servidores públicos, onde está o maior problema financeiro nesse momento, e combater a sonegação, combater as fraudes, recuperar os créditos no regime geral. Temos mais de R$ 100 bilhões que podem ser recuperados.

IICom a unificação, estados e municípios passariam a contribuir para o INSS?
RB – Na verdade, quando proponho o sistema único isso não significa unificar no INSS imediatamente. Até porque, senão os estados e municípios teriam que contribuir para o INSS ao mesmo tempo em que arcam com as despesas da geração de quem já se aposentou. A idéia nossa é unificar a regra, estabelecendo-se um prazo para unificação efetiva do sistema que pode ser 10, 15 anos, depende de um estudo atuarial mais profundo.

IIA previdência complementar do funcionalismo público poderia ser montada sobre a estrutura dos institutos de previdência dos municípios?
RB – Essa é uma questão a ser examinada. Eu, pessoalmente, sou simpático à idéia de se transformarem em fundos de pensão. Agora, evidentemente, essa é uma idéia que pode ser discutida e analisada e estou aberto para ouvir outras opiniões.

IIOs institutos teriam que devolver para o INSS parte dos recursos arrecadados?
RB – Nesses casos em que há, de fato, a contabilização própria, a parte básica teria que ser dissociada contabilmente para se fazer a contribuição por um período para esse fundo e posteriormente a migração dessas contas para o INSS.

IIO PL-9 fica suspenso, por enquanto?
RB – Nós vamos avaliar a oportunidade de aprová-lo. Eventualmente, ele pode ser aprovado e isso já criaria uma situação legal para quem entrasse no setor público após a sua aprovação, ao mesmo tempo em que se busca eliminar dispositivos da Constituição que impedem que os atuais servidores sejam agregados a esse fundo. Então, o ideal seria trabalhar o PL-9 se tivermos condições de aprová-lo, creio que pode ser até no começo dos trabalhos legislativos.

IIE quanto à Lei Complementar 108, fala-se que ela poderia ser modificada no ponto que trata do voto de Minerva para os fundos de pensão. Isso pode acontecer?
RB – Eu participei da elaboração da 108 e da 109 e acho que ambas tiveram avanços e retrocessos. Eu acho que o ideal, e já determinei ao secretário da SPC, é que nós façamos um debate amplo com as entidades que atuam no setor dos fundos de pensão para verificar a oportunidade de fazermos uma revisão da 108 e da 109, focando principalmente naqueles aspectos que foram mais polêmicos durante a tramitação da lei no Congresso. Mas tem que ser um movimento cuidadoso, porque nós vamos estar com outros sistemas previdenciários no Congresso e às vezes não vale a pena encaminhar muitos temas previdenciários simultaneamente.

IIE sobre a contribuição dos inativos?
RB – Essa é uma questão delicadíssima. O Supremo já tem uma posição, há quem defenda que com a Emenda Constitucional seria possível alterar essa posição do Supremo, mas também há quem defenda que o direito adquirido prevalece nessa tese. Eu, pessoalmente, não entendo que essa seja uma questão prioritária na reforma da previdência, até porque o seu resultado financeiro seria pequeno diante de tudo aquilo que nós precisamos fazer para equacionar a questão previdenciária.

IIExiste algum plano de mudar a gestão dos recursos do INSS?
RB – Quero discutir com os movimentos sociais e sindicais a gestão quadripartite dos recursos do INSS, ou seja, adequar no estatuto do INSS a participação que está prevista na Constituição. Essa é uma questão que acho que seria um avanço importante, porque daria uma maior transparência.

IIQuais seriam essas quatro partes?
RB – Os empregadores, os empregados, os aposentados e o governo. A gestão quadripartite teria no combate à fraude e à sonegação e na recuperação de créditos uma bandeira permanente. Hoje não existe essa gestão no INSS, hoje tem o Conselho Nacional de Previdência Social.

IIUma das idéias aventadas no início da campanha presidencial era de incentivar a filiação dos informais à Previdência, de forma a aumentar a arrecadação. Essa idéia vai ser desenvolvida?
RB – Nós vamos trabalhar com dois tipos de informalidade: uma é a informalidade que é contingência das crises econômica e social, das pessoas que passaram a desenvolver uma atividade por conta própria, com uma renda muito pequena e sem nenhuma motivação imediata para pagar a previdência, até porque o benefício é futuro; e temos a outra informalidade, das empresas que sonegam totalmente ou parcialmente a previdência, sem registrar ou subregistrando o empregado. Nesse segundo caso, nós devemos estudar uma forma de mudar o sistema de financiamento da previdência.

IIEm que direção isso está sendo pensado?
RB – O financiamento, hoje, recai pesadamente sobre a folha de pagamento e isso acaba se tornando um custo fixo para a empresa. Isso leva muitos empresários, mesmo de maneira ilegal e irregular, a sonegar e em alguns aspectos pode-se até compreender as razões desse procedimento. O que nós queremos é justamente reduzir a motivação para a sonegação e aumentar a motivação para estar de acordo com a lei.

IIDe que forma?
RB – Transferindo parte desse financiamento para outro fato econômico, como a nossa própria Constituição prevê. Poderia ser o faturamento, poderia ser o lucro ou poderia ser a CPMF ou uma combinação desses três fatores. Veja, a taxa de 0,38% da CPMF significa R$ 20 bilhões por ano de arrecadação. Será que a sociedade estaria disposta, por exemplo, a trocar metade da arrecadação da folha de pagamento por um adicional de 0,5% da CPMF? Qual o impacto alocativo, do ponto de vista econômico, dessa medida? São idéias que quero trazer para o debate, sem o compromisso de fazer essa mudança no curto prazo. Vamos avaliar concretamente o que significaria retirar o peso da folha de pagamento e transferir para outra base tributária. Isso vai ser estudado o mais breve possível.