Aposta em bancos éticos | O catalão Joan Melé, que trabalhou por ...

O catalão Joan Melé trabalhou durante 30 anos em bancos tradicionais espanhóis, tendo mudado radicalmente sua carreira em 2007 quando resolveu assumir o desafio de criar uma filial do primeiro banco ético do mundo, o holandês Triodos Bank, em Barcelona. Ele estava cansado das turbulências dos bancos tradicionais, de ver vidas se transformando por heranças e falências, ver fortunas que se faziam do dia para a noite e outras que desapareciam também na mesma velocidade, e se perguntava qual o melhor uso que os clientes deveriam dar ao seu dinheiro. O Triodos Bank, uma instituição que tinha como objetivo financiar atividades consideradas social, educacional e ambientalmente corretas, tinha a resposta. Financiar atividades éticas, que ajudassem a mudar o mundo!
Melé gostou da idéia e ficou por dez anos na Triodos, saindo há dois anos para criar sua própria fundação, chamada Dinheiro e Consciência. O objetivo é desenvolver o primeiro banco ético latino-americano. Nesse período, tem feito palestras quase que diariamente a todo tipo de instituição preocupada com valores culturais, sociais, culturais e éticos atuando nos países latino-americanos, em busca de apoio ao seu projeto. A primeira licença para um banco ético latino americano deve ser pedida no ano que vem, no Chile. Veja a seguir os principais trechos da entrevista de Milé à Investidor Institucional:

Investidor Institucional – Poderia explicar o que é esse movimento por um banco ético?
Joan Melé – É importante explicar isso, porque nos mais de 40 anos que tenho de experiência em bancos, nunca nenhum cliente me perguntou o que o banco fazia com o dinheiro deles. Os bancos se convertem nos donos do dinheiro, usam o dinheiro como se fosse deles, mas não é. Os proprietários do dinheiro são seus clientes, que têm o direito e a responsabilidade de saber como esse dinheiro está sendo usado. Esse conceito nasceu no final dos anos 60 do século passado, quando as pessoas começaram a perguntar o que o banco faz com o seu dinheiro. É uma pergunta muito importante, porque pode estar financiando empresas que, se os clientes soubessem, não permitiriam.

IIQue tipo de empresas?
JM – Por exemplo, empresas que estão contaminando o meio ambiente, empresas que não respeitam os direitos humanos, empresas que estão discriminando a mulher, e um monte de coisas que não gostamos. Então, o cliente deve saber onde o dinheiro está sendo usado para poder dizer que isso não vai permitir.

IIComo nasceu o conceito de banco ético?
JM – Nasceu com o Triodos Bank, um banco holandês que depois se estendeu para toda a Europa e que define claramente os critérios de investimento e de não investimento. Ele estabelece três critérios de investimento, em empresas ou projetos que aportem valor à cultura e à educação, em empresas ou projetos que aportem valor ao desenvolvimento social e em empresas ou projetos que aportem valor ao meio ambiente. Esses três setores se dividem em mais de 150 sub-setores com diferentes projetos.

IIEsses projetos conseguem trazer rentabilidade para o banco?
JM – Claro que eles têm que gerar benefício econômico, mas o dinheiro não pode estar à frente das pessoas ou da terra. E é isso que está acontecendo hoje, destruímos a terra, exploramos as pessoas e só pensamos em dinheiro, em crescimento, crescimento. A economia não pode crescer mais, tem que amadurecer. Claro que temos que buscar rentabilidade, mas as pessoas e a terra estão antes dos benefícios econômicos.

IIComo é a rentabilidade do Triodos Bank?
JM – O ROE (Retorno sobre o Patrimônio Líquido) do Triodos Bank na Europa oscila historicamente ao redor de 4% nos últimos 10, 15 anos. Para uma taxa de juros na Europa que hoje é negativa, 4% é uma boa rentabilidade. O que quer dizer que somos rentáveis, mas nossa economia não dá saltos, porque não somos especulativos. Quando se é especulativo, uns ganham e outros perdem, mas nós queremos que todos ganhem. Além disso, temos uma taxa de solvência das mais altas da Espanha, uma taxa de insolvência das mais baixas dos bancos espanhóis.

IIQual o patrimônio do banco?
JM – O valor exato do balanço eu não saberia dizer agora, mas está em torno de 20 bilhões de euros. É um banco pequeno, com 750 mil clientes e 1.200 funcionários. Comparado aos outros bancos é pequeno, mas tem crescido bastante. Na Espanha obteve tanto êxito que milhares de pessoas faziam fila na rua para abrir uma conta. Mas crescer muito rápido também significa que a qualidade do serviço se deteriora, então não precisa crescer muito rápido. O que queremos é mostrar aos outros bancos que se quiserem podem mudar.

IIQuando vocês dizem que são um banco ético, também estão dizendo que os outros não o são. Acha isso mesmo?
JM – O nome de banco ético não foi dado por nós, as pessoas nos puseram essa etiqueta porque temos critérios de investimentos e de não investimentos que são claros, porque somos transparentes e explicamos até o último centavo onde estamos investindo o dinheiro dos clientes. É possível que haja bancos que não sejam éticos e que as pessoas saibam disso e continuem depositando seu dinheiro neles. Se o cliente só busca rentabilidade vai tê-la em qualquer banco, mas se o cliente tem critérios éticos e diz onde permite investir e onde não permite, então o banco vai ter que fazer mudanças.

II – Acha que eles farão essas mudanças?
JM – Acho que os bancos podem mudar. Tem muitos bancos na América Latina que me chamaram para ver se eu queria colaborar com eles. Não vou falar de nomes, mas quando explico o que somos eu vejo que eles se entusiasmam, mas quando falo de algumas condições para começar, por exemplo, que vamos elaborar um plano de 5 anos, 7 anos ou 10 anos criando um plano real de investimentos éticos, um plano verdadeiro, não marketing, não greenwashing (iniciativas enganosas de responsabilidade ecológica e sustentabilidade), aí a coisa começa a complicar. Quando se diz que tem que haver transparência total, que tem que deixar de investir em alguns setores e em outros tem que começar a investir, que a diferença de salários entre diretores e empregados não pode ser tão grande, que qualquer empregado tem que ter a mesma dignidade de qualquer diretor, isso muitos bancos não aceitam.

IINão seria possível ter um braço ético de um banco tradicional?
JM – Não, claro que não. Seria como se uma parte da organização estivesse liberada para financiar setores que destroem o planeta e a outra parte quisesse apoiar setores éticos. Isso não funciona, ou é totalmente ético ou não é ético.

IIQual é a diferença entre o banco ético que vocês propõem e os fundos éticos, que vários bancos tradicionais têm?
JM – Quando você olha o nível de exigência desses fundos, há na verdade poucos critérios éticos. Nosso nível de exigência é muitíssimo mais alto. Por exemplo, nós financiamos a agricultura, porém só a agricultura orgânica, biodinâmica. Convidamos o agricultor a fazer um processo de transformação. Não vamos financiar processos que usam pesticidas, fertilizantes químicos, transgênicos, essas coisas que destroem a terra, destroem a saúde.

IIE há retorno para investimentos na agricultura orgânica?
JM – Claro! Os agricultores que mudaram para orgânicos agora ganham mais dinheiro. Porque o mundo já demanda mais produtos orgânicos que os outros produtos.

IIMas esses produtos ainda são muito caros…
JM – Não, não são muito caros. As coisas têm um valor. Quando você paga algo abaixo do valor, alguém vai pagar por você. Quando dizemos que um vestido é barato, é barato porque alguém está trabalhando em condição de escravo em outro país do mundo. Não nos enganemos, não existem coisas baratas. Um Mercedez Benz custa mais do que um Fiat 600, mas você sabe que está comprando outra qualidade. Com alimentos de qualidade é a mesma coisa, é outra qualidade, não estamos colocando porcarias no corpo.

IIQuais os outros setores vocês financiam?
JM – Por exemplo, as energias renováveis como a solar fotovoltaica, a térmica, a eólica, a biomassa, são todos processos de eficiência energética. Hoje estão construindo edifícios que economizam 60% a 70% de consumo energético pelo mesmo custo de qualquer outro edifício. São bons projetos para financiar. Também financiamos projetos culturais nas áreas de educação, escolas, cinema, teatro, música, arte, pesquisas, e também projetos sociais nas áreas de atenção às crianças, à terceira idade, cooperativas de desenvolvimento, etc. São todos projetos que devem dar dinheiro, dar retorno.

IIEsses critérios ajudam a atrair pessoas para trabalhar com vocês?
JM – Recebemos curriculuns de diretores de bancos que dizem que estão dispostos a reduzir em 30% os seus salários para trabalhar num banco assim. Os jovens estão demandando mais consciência, vi uma jovem mulher de 27 anos que acabava de deixar uma multinacional onde ganhava 60 mil dólares por ano e foi para uma empresa para ganhar 24 mil dólares. E por que isso? Porque passou a trabalhar para um propósito humano, trabalho criativo, em equipe. As pessoas querem viver com um propósito, não só com dinheiro. As empresas que não perceberem isso vão perder mercado.

IIVocê deixou o Triodos Bank há dois anos e está tentando replicar o mesmo modelo de bancos éticos na América Latina. Como está esse projeto?
JM – No momento já estamos presentes no Chile, Argentina, Uruguai, Brasil, Colômbia e México. Estamos trabalhando com plataformas pre-bancárias, como crowdfunding, fundos de investimento e diversas outras, mas em março do próximo ano vamos solicitar a licença bancária para operar um banco no Chile. Estamos trabalhando há 4 anos para conseguir essa licença, sem isso não se abre um banco.

IIHá quanto tempo começou esse trabalho de preparação?
JM – Começamos primeiro no Chile, me convidaram 7 anos atrás para duas palestras e muitas pessoas se interessaram pelo tema e no ano seguinte voltaram a me convidar. Depois disso me perguntaram se poderíamos criar um banco no Chile seguindo o modelo do Triodos Bank e há 5 anos começamos o processo de criar a equipe, fazer a formação das pessoas, fazer estudos de mercado, de viabilidade, conseguir capital. Há 3 anos já estamos financiando projetos naquele país através do crowdfunding e fundos de investimento, o que nos permite que no próximo ano solicitemos a licença bancária. E estamos fazendo o mesmo nos outros países, seguindo o mesmo processo, trabalhando juntos, de maneira que a experiência do Chile sirva para o Brasil e não tenhamos que começar do zero.

IIE já tem parceiros lá?
JM – Sim, pessoas que tem posto capital, fundações que tem dado dinheiro. São pessoas privadas, investidores privados, family offices, que não estão buscando só uma rentabilidade econômica, a qual vão ter, é claro, mas para eles o mais importante é que o dinheiro deles sirva para transformar o mundo. Temos encontrado pessoas que tem colocado capital em troca de bônus que serão trocados por ações quando surgir o banco. Imagine o nível de confiança que temos despertado nessas pessoas, não recebem ações, mas bônus que serão trocados por ações.

IIE como está no Brasil?
JM – No Brasil estamos fazendo estas palestras, apresentando o projeto para ver como as pessoas recebem e como vai se desenvolver.

IIQual sua opinião sobre a globalização, que é a marca da indústria de investimentos hoje?
JM – Eu gosto da globalização, mas a globalização total, globalizar não só os investimentos mas também a consciência. Muitas vezes levamos investimentos para países que não respeitam direitos humanos. É claro que traz muita rentabilidade, é mais rentável pagar um salário miserável do que um salário digno. É mais rentável destruir um bosque do que voltar a plantar. Mas isso é que não podemos permitir. É bom que o dinheiro circule por todo o mundo, o nosso projeto para América Latina e Brasil certamente receberá dinheiro de fundos de investimentos de outros lugares do mundo, porém vamos explicar o que estamos fazendo e o que estamos financiando.

IIComo vê os fundos de investimento que ganham dinheiro sem financiar atividades e projetos do mundo real?
JM – Esse é outro problema, hoje a grande maioria dos fundos de investimentos são de natureza puramente especulativa. Não estão fomentando a economia real, só buscam rentabilidade. Isso tem que mudar. É bom que o dinheiro seja global, mas a consciência também tem que ser global para garantir que se respeite as pessoas e o planeta terra. Primeiro as pessoas e a terra e depois os benefícios econômicos. Essa é a ordem de valores.

IIEntão o propósito do banco ético é financiar a economia real?
JM – Sim. Você sabia que hoje, de todo o dinheiro que se move no mundo, 99% é especulativo? Ao mesmo tempo tenho encontrado muitos projetos econômicos que criariam postos de trabalho muito importantes e que não são concretizados porque nenhum banco quer financiar. Eu, por exemplo, não colocaria meu dinheiro num banco que não financia a economia real, quero financiar projetos reais, seres humanos.

IIMas as pessoas não estão mais preocupadas com a rentabilidade?
JM – Sim, porque elas não sabem onde o dinheiro delas está investido. Como as pessoas estão obcecadas por rentabilidade, ninguém pergunta o que o banco está fazendo. Se eu for a qualquer banco e perguntar a um cliente: “você sabe onde o seu fundo investe o seu dinheiro?”, a maioria não sabe. O banco investe onde quer. É necessário despertar a consciência das pessoas para se preocuparem com o caminho do seu dinheiro.

IIOs mais jovens começam a ter essa consciência?
JM – Eles estão dando lições aos adultos. E não estão só mudando a consciência, estão agindo. Veja essa jovem, Greta Thunberg, de 16 anos, está dando lições ao mundo. Os jovens olham os adultos e dizem, vocês estão destruindo o mundo.

IIMas os jovens não são os donos do dinheiro.
JM – Mas serão. E o que fazem está envergonhando seus pais, os adultos e as Nações Unidas. Os adultos deveriam ter vergonha de que seja uma jovem que tenha que nos explicar o que devemos fazer. Confio muito neles e espero que sigam protestando, se manifestando, sem ir às aulas, ensinando que a sociedade está corrupta e que para mudar isso tem que mudar a educação.