Edição 99
Márcio Cavour, da JL Alqueres Engenharia Consultiva
Com a experiência de quem atuou por 17 anos na área financeira da Eletrobrás e presidiu por 6 anos a Eletros, o agora consultor Márcio Cavour, da JL Alqueres Engenharia Consultiva, acredita que o estímulo a investimentos na geração de energia por parte das fundações e de outros potenciais investidores do setor elétrico passará necessariamente pela definição de regras claras para o setor. Para Cavour, foi justamente a falta de um arcabouço regulatório claro e definido que fez com que os investidores, num primeiro momento do processo de privatização no país, evitassem os ativos de geração e priorizassem a compra de empresas na área de telefonia.
Apesar das dificuldades por que devem passar as empresas de energia neste ano – muitas das quais com participações de fundações -, com a expectativa de perdas de receita decorrentes do racionamento, o consultor considera que os transtornos serão passageiros. E não abalam a atratividade do setor elétrico como investimento para as fundações, já que o setor oferece retornos de longo prazo.
Essas e outras opiniões do consultor estão na entrevista a seguir.
Investidor Institucional – Que oportunidades a crise energética cria para os investidores institucionais?
Márcio Cavour – Essa crise vai gerar uma necessidade de diversificação de investimentos muito grande, não apenas em geração mas também em transmissão, porque estamos vendo que também no setor de transmissão faltaram investimentos. Mas como a deficiência maior é mesmo em geração, a necessidade de trazer investimentos para essa área vai obrigar o governo, a meu ver, a definir regras mais claras para o setor, regras que ofereçam segurança aos investidores, sejam os institucionais brasileiros, sejam os estrangeiros.
II – Essas regras podem fazer deslanchar os programas que até há pouco tempo eram tidos como alternativos pelo governo?
MC – Bem, esses programas passam a ser considerados com maior seriedade. É o caso da co-geração, por exemplo, nos setores de siderurgia e açúcar e álcool, do programa das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), e da geração própria para certos setores, como a telefonia, por exemplo. Setores inteiros da economia estão sendo chamados pelo governo a colaborar, digamos assim, com programas próprios de geração de energia. Além do PTT, que é o programa das térmicas, outros tipos de investimentos vão começar a ser observados de uma maneira muito intensa. E o que era impensável há, digamos, cinco anos atrás, está começando a aparecer como alternativa.
II – O sr. dirigia a Eletros na época da compra da Escelsa, a primeira empresa elétrica privatizada, por um consórcio que reuniu fundos e bancos. Como o sr. analisa essa experiência?
MC – A Eletros participou, com outros fundos de pensão, da constituição da GTD, que se juntou à Iven (a empresa formada pelos bancos) para comprar a Escelsa. Então, juntas, a Iven e a GTD compraram a Escelsa. Na ocasião, o negócio foi avaliado como muito interessante, o preço era bom, todos achavam que a Escelsa era um investimento muito interessante no longo prazo. Mas a Escelsa teve problemas internos que persistem até hoje e que, de uma certa maneira, prejudicaram o desempenho. Eu, pessoalmente, tenho convicção absoluta de que foi um bom negócio e será um bom negócio investir no setor de energia.
II – Muitos avaliam que o retorno da Escelsa para as fundações tem sido insatisfatório.
MC – Eu diria que ela foi prejudicada por divergências na administração, e só por isso. Sem essas divergências na administração, a empresa estaria numa situação melhor. Quando me refiro à administração, estou me referindo a divergências entre sócios, e não à administração por parte da diretoria executiva, que é bastante competente.
II – A Escelsa, por ter sido a primeira empresa a ser privatizada, enfrentou no início um problema de regulação, com a demora no repasse de custos para as tarifas. O sr. acha que hoje o modelo está melhor definido ou o investimento em energia ainda representa um risco regulatório muito grande para as fundações?
MC – Essa questão da regulação e a questão das tarifas é uma coisa que ainda tem algumas distorções. Tanto que o diretor da Aneel (a agência regulatória do setor), o Mário Abdo, está propondo uma antecipação de todo um processo de revisão das tarifas, pois existe hoje uma insatisfação que eu diria que é generalizada com o esquema tarifário vigente. E a Escelsa, você tem razão, ela foi um pouco prejudicada no início pelo padrão tarifário que estava vigindo. De qualquer forma, aparentemente a Aneel reconhece agora que faltaram estímulo e regras claras para investimentos em geração, e isso resultou no problema que estamos vivendo. Então, em resumo, acredito que a Aneel e o governo terão que mexer realmente nessa estrutura tarifária.
II – Isso tornará interessante os investimentos em que tipos de projetos?
MC – Esse programa das usinas térmicas é um programa que algumas fundações, as maiores, estão olhando com bastante atenção; também o programa das PCHs, que está numa fase inicial, poderá se tornar bastante atrativo no curto e no médio prazos; e existem esses programas de co-geração, que eu não diria que as fundações já estejam olhando com atenção, mas que eu acredito que elas vão passar a observar mais atentamente, na medida em que sejam organizadas e oferecidas essas alternativas, na medida em que existam estudos sólidos mostrando que esses programas serão rentáveis no tempo. Uma coisa é ser rentável, eventualmente, no curto prazo, e outra é ser rentável a longo prazo. As fundações precisam ter projetos que sejam rentáveis no longo prazo e não apenas no momento de crise.
II – Algumas fontes do setor elétrico falam que a crise pode motivar projetos que teriam um papel importante durante a crise mas, depois dela, eles perderiam o sentido. O que o sr. acha disso?
MC – Há esse risco. Há projetos que, num momento de crise, podem oferecer uma rentabilidade muito grande mas depois, na medida em que o padrão de suprimento de energia voltar ao normal, podem tornar-se superados. Estou me referindo, por exemplo, como ilustração e sem uma base de conhecimento sólida, a questão do bagaço de cana produzido pelas usinas de açúcar e álcool. Pode ser que no momento inicial, na crise absoluta de energia, esse projeto apareça como de boa rentabilidade, mas que uma vez estabilizadas as condições de suprimento habituais, eu não sei se essa rentabilidade se manterá. Veja que eu não estou afirmando que não se manterá, estou manifestando uma dúvida.
II – Quais seriam as ferramentas para os investidores institucionais aplicarem recursos na área de energia? Investimentos diretos ou através de fundos de private equity?
MC – Investimentos diretos, salvo erro de avaliação meu, só poderão ser feitos pelas grandes fundações, talvez as 10 maiores, porque são fundações que têm equipes técnicas fortes que poderão ter condições de analisar esse tipo de projeto. E, mesmo assim, não sei se todas realmente têm equipes com essa capacitação. A minha opinião é de que haverá uma tendência para que os investimentos sejam feitos através de fundos de investimento, em que as equipes dos fundos façam as análises e apresentem os projetos para os diversos investidores.
II – Estamos vendo a estruturação de alguns private equities por alguns gestores. Seria esse o caminho?
MC – Poderá haver através de private equity. A Resolução 2.829, do Conselho Monetário Nacional, ainda é muito recente. Percebemos que as fundações ainda não estão seguras quanto à interpretação de certos dispositivos e temos notícia também de que a CVM está em vias de regular esse mercado de private equity. Isso é uma coisa que CVM não fez ainda e a gente sabe que ela tem uma minuta de resolução para tratar da questão do private equity. Acredito que as fundações estejam até esperando um pouco a consolidação da 2.829, combinada com a regulação da CVM, para poderem definir os seus posicionamentos.
II – Haveria algum impedimento na Resolução 2.829, ou em termos de enquadramento das fundações, um vez que algumas já têm uma participação grande em alguns segmentos?
MC – A 2.829 tem alguns artigos que percebo que não foram ainda assimilados pelas próprias fundações. Ainda existem dúvidas quanto a certos limites. Acho também que é muito difícil a gente interpretar, ou julgar até, o padrão de investimentos feito pelas fundações a partir do que é feito apenas por aquelas que eu costumo chamar de “grandonas”, como a Previ, a Petros, a Cesp, a Funcef. É preciso, às vezes, separar o que elas fazem do que faz o conjunto das fundações. O fato de as grandes terem esse poder de fogo muito maior, embora estejam submetidas à mesma legislação, dá a elas uma condição diferente. Então, sinto que nas fundações menores ou intermediárias, digamos assim, existe ainda uma certa insegurança quanto à interpretação da 2.829 e quanto a investimentos que eu chamaria de não-tradicionais. Não-tradicionais, neste caso, não é por serem desconhecidos. Mas a própria indústria de private equity não está consolidada no Brasil e isto gera uma certa insegurança nas fundações intermediárias ou menores.
II – A experiência com o Opportunity é um fator que está contribuindo para essa insegurança?
MC – Eu não conheço detalhes do que se passa no relacionamento do Opportunity com as demais fundações, só conheço através dos jornais, então eu não tenho condições de avaliar com opinião própria.
II – Teria um conjunto de fundações que estaria mais aberto a investimentos neste setor, além das grandes? Alguma outra ligada ao setor elétrico mesmo?
MC – Eu não consigo identificar assim. Eu percebo que as fundações estão numa fase de dar atenção ao tema, voltando-se para dois temas em paralelo: o tema da possibilidade de investimentos em fundos do tipo private equity e o tema da crise de energia gerando novas oportunidades. Mas como esses dois temas são muito recentes, a 2.829 é super recente e a crise de energia e as oportunidades que o setor de energia vão gerar também são uma coisa recente, não dá nem para configurar qual será a tendência. O que eu percebo é que as fundações estão se voltando para analisar e estudar esses temas e, provavelmente dentro de algum tempo, principalmente a questão da energia poderá se tornar uma prioridade. Mas, neste momento, ainda não consigo definir uma tendência clara.
II – Mas o sr. vê alguma alternativa para que as fundações possam participar desses investimentos, tais como negociações de dívidas com as patrocinadoras ainda estatais ou então essa questão mesmo do imposto de renda, que virou uma briga na Justiça, mas para a qual o governo poderia propor alguma alternativa para captar esses recursos?
MC – Com relação à dívida de patrocinadoras, prefiro não opinar por desconhecimento – e quando falo em desconhecimento, estou me referindo ao fato de que não conheço, hoje, qual é o volume de dívidas de patrocinadoras perante o conjunto das fundações. Realmente não tenho esse dado e gostaria de não opinar. Com relação ao imposto de renda, eu acho que o governo, vamos dizer, ele está forçando uma situação ou mantendo uma discussão que, a meu ver, não leva a nada. Porque, inclusive, a nova legislação, que previa a isenção do IR para o conjunto das fundações, foi superdiscutida na Câmara, no Senado, foi uma legislação que foi super debatida e, no entanto, o presidente vetou esse artigo. Então, eu acho lamentável. E é uma pena que o governo esteja ainda com este tipo de atitude, quando universalmente, internacionalmente, a questão da tributação já está resolvida. Internacionalmente, os fundos de pensão não são tributados e eu não consigo entender bem porque aqui no Brasil a gente ainda está com essa dificuldade.
II – Mas o sr. não vê alguma alternativa para isso, como o governo propor alguma forma de investimento em energia ou infra-estrutura em geral, ao invés de simplesmente querer ficar com esses recursos que estão provisionados?
MC – Em primeiro lugar esse valor não é devido, está provisionado. Agora, se for em última análise, em última hipótese, se houver uma grande negociação nesse sentido, seria talvez um mal menor para o conjunto dos investidores.
II – As fundações que já investem, que já têm participações em empresas, como a Escelsa ou a Guaraniana, estariam expostas ao outro lado desta crise, que seriam os prejuízos provocados, por exemplo, pela perda de receita decorrente do racionamento?
MC – Realmente isso pode ocorrer. É possível que exista uma dificuldade grande por parte das empresas distribuidoras – também as geradoras, mas mais as distribuidoras –, que foram as empresas que receberam esses investimentos. É possível que elas tenham perdas e, conseqüentemente, prejuízos. E isso sem dúvida vai refletir na rentabilidade de algumas fundações. Mas eu acredito que isso seja circunstancial e temporário. No longo prazo, eu acredito que o setor elétrico continue sendo uma excelente opção de investimentos. E como as fundações têm obrigação de raciocinar e investir pensando no longo prazo, eu não acredito que essas perdas temporárias tenham grandes repercussões nesse longo prazo. No longo prazo eu sou completamente otimista com relação a estes investimentos.
II – A JL Alqueres, a empresa para a qual o sr. trabalha, está montando um fundo de investimento voltado para a área de energia, a pedido do banco Banif Primus. O sr. poderia falar um pouco desse novo trabalho que está realizando?
MC – Esse trabalho está numa fase muito preliminar ainda e eu não teria muito subsídio para passar para você.
II – A gente percebe, hoje, uma mudança de postura dos dirigentes de fundos de pensão, que estão cobrando mais os seus direitos e boas práticas de governança corporativa. Qual as lições que se pode tirar da experiência da Escelsa para o futuro?
MC – Acho que essa experiência da Escelsa e esses problemas que aconteceram lá, a gente vê todos os dias nos jornais também em outros setores. Principalmente em telecomunicações, onde a gente observa a dificuldade no relacionamento entre alguns fundos de pensão e outros sócios, não apenas sócios estrangeiros, mas principalmente sócios banqueiros, brasileiros mesmo. Então, a questão da definição de boas regras de governança corporativa será necessária para, não digo eliminar, mas reduzir esse tipo de conflito, que têm prejudicado o funcionamento das empresas privatizadas. Nós estamos ainda num processo inicial de definições de regras de governança corporativa, que precisam ser consolidadas para que esse tipo de conflito seja minimizado no futuro.
II – Por que as fundações participaram mais da privatização no setor de telecomunicações e menos no de energia?
MC – Provavelmente porque no setor de telecomunicações foi estabelecido, desde o início, um marco regulatório, houve uma fixação de regras bastante claras. O então o ministro (das Comunicações) Sérgio Motta chamou para si a regulação do processo no setor de telecomunicações e esse processo foi definido de uma forma muito clara. Os investidores, sejam as fundações, sejam os estrangeiros, tiveram então muita segurança para entrar no setor. E isso não aconteceu no setor elétrico. No setor elétrico, ficou um vazio regulatório que não estimulou a entrada dos investidores em certas áreas, como geração. E esse vazio permanece até hoje. Por isso, existe a convicção generalizada, da qual eu compartilho, de que não haverá investimentos em geração por parte de investidores privados enquanto não existirem regras bem definidas. Em resumo, a diferença entre um setor e outro é que um partiu com regras claras e outro não tem regras até hoje, não têm regras totais, abrangentes.