A síntese do sistema

Edição 232

Devanir da Silva, secretário executivo da Abrapp

A primeira edição da revista Investidor Institucional surgiu em setembro de 1996, circulando no 17º Congresso da Abrapp realizado em Olinda (PE) entre os dias 15 e 19 de setembro. A edição trazia em sua manchete entrevista com a então secretária de Previdência Complementar, Carla Grasso, falando sobre perspectivas de novas regras de investimento para os fundos de pensão. Ela falou sobre isso no Congresso, assim como o presidente da Abrapp da época, Nélson Rogieri. Um personagem, entretanto, estava por trás de todas as costuras políticas, assim como estaria nos anos seguintes e está hoje: o secretário executivo da entidade, Devanir da Silva. Reservado, ponderado, mas atuante em todas as frentes de negociação nos principais momentos da vida dos fundos de pensão, Devanir foi sempre figura decisiva atuando nos bastidores do sistema. Nessa edição de 15 anos da revista tivemos uma conversa descontraída com ele, que nos falou abertamente sobre os principais pontos da vida do sistema nesse período:

Investidor Institucional – Qual seria a síntese do sistema de fundos de pensão nos últimos 15 anos?
Devanir da Silva – O sistema viveu um crescimento vegetativo, praticamente não houve crescimento em número de entidades e em número de participantes nesse período, mas o patrimônio cresceu 6,49 vezes como resultado dos acertos nos investimentos. Acho que isso é a sínteste do sistema.

II – O que isso representou em comparação com a meta atuarial?
DS – Alcançamos o dobro da nossa necessidade atuarial. Para uma necessidade atuarial de 744% nós tivemos uma rentabilidade acumulada de 1.532%. Claro que era uma outra realidade, hoje alcançar a meta atuarial está cada vez mais difícil, assim como todos os outros desafios aos dirigentes de fundos de pensão.

II – Como era o sistema há 15 anos?
DS – O País seguia um modelo econômico que vigorava desde os anos 1970, do Brasil Empresário, no qual o Estado produzia e comandava empresas usando os fundos de pensão como instrumento político de recursos humanos. Então, nós tínhamos um participante quase compulsório, que em decorrência desse modelo praticamente não tinha chance de escolher se queria ou não estar dentro do fundo de pensão. Tinha que estar. Depois veio o setor privado, também com a mesma filosofia.

II – E quando isso começou a mudar?
DS – Com a crise e a falta de investimentos dos anos 1980, quando o modelo do Brasil Empresário deixou de se sustentar. Isso teve reflexos muito grandes na geração de empregos e na formatação dos planos. Começaram a ser introduzidos os primeiros planos CD, até então era tudo BD. Quando a revista Investidor Institucional chegou, em 1996, nós estávamos em uma grande crise de identidade, com o modelo chileno, que era a bola da vez, batendo à porta.

II – Por que o modelo chileno atraía, naquela época, os fundos de pensão brasileiros?
DS – A pressão vinda do modelo chileno, de privatização total da previdência, era muito forte naquela época. Tinha muita gente convencida que era o grande momento para formar uma poupança brutal interna, que iria tirar o ônus do Estado. Mas tinha o custo da transição, que era muito grande. Custaria o PIB do Brasil na época para fazer um plano de capitalização pura. O Chile também teve um custo dessa transição, mas era um país menor. Felizmente, não caminhamos por aí e adotamos o modelo europeu, que é o modelo do tripé, em que se tem um dever mínimo do Estado, depois tem os planos coletivos e por fim a poupança individual. Mas houve uma grande pressão das instituições, das seguradoras, a favor do modelo chileno.

II – Acertamos ao não adotar o modelo chileno?
DS – Acho que sim. No Chile a poupança foi concentrada em poucas instituições financeiras, acho que hoje são apenas quatro e basicamente de capital externo. O modelo resultou em uma grande massa desprotegida, tanto que a Bachelet (Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile) teve que voltar atrás e garantir uma pensão mínima alguns anos atrás. Alguns países, como a Argentina, até pioraram o sistema chileno, porque primeiro fizeram um sistema híbrido e depois voltaram atrás, re-estatizaram o sistema e deram o calote. Mas a pressão do modelo chileno naquela época era muito forte, inclusive politicamente.

II – Como assim, politicamente?
DS – Nesse período vivíamos uma crise de imagem, com questionamentos ao modelo do Estado-empresário e ao custo de muitos aspectos desse modelo. Começaram a cobrar o porquê de uma relação contributiva tão alta nas entidades ligadas ao setor público, dizendo que tinha se criado uma benesse para poucos privilegiados com o Estado brasileiro bancando isso. Foi um ataque frontal aos fundos das empresas públicas e isso culminou naquela CPI de 1996.

II – Qual era o cerne da CPI?
DS – Primeiro essa grande crítica a uma contribuição considerada excessiva. Depois, como o sistema já acumulava alguns bilhões à época, começou a se criticar o processo de governança dos fundos, as indicações de profissionais que diziam serem políticas. Havia muito questionamento a isso, mas sem muito conteúdo, como mostra o crescimento do patrimônio dos fundos, pois ninguém cria resultados como o que construímos com ausência de competência. Mas foi um período muito duro, felizmente alguns grandes atores participaram na defesa dos fundos naquela época, como por exemplo o deputado Manuel Castro, o hoje senador José Pimentel, o então deputado Luis Gushiken que depois virou ministro do governo Lula, um jovem advogado que naquela época trabalhava com o Gushiken, o doutor Adacir Reis, que foi nomeado para a Secretaria de Previdência Complementar (SPC) no governo Lula. Depois vieram outros, como o Ricardo Berzoini, o falecido deputado Nélson Marquezan, que teve uma participação fundamental. Foi uma época muito dura, de contestação do sistema.

II – Como essas críticas se inseriram nas discussões da reforma previdenciária?
DS – O sistema esteve exposto a esse grande debate entre 1995 e 1996. Em 1998 veio a emenda constitucional número 20 e em 1999 foram apresentados três projetos, o de número 10 que foi transformado na Lei 109, que é a Lei geral; o de número 8 que se transformou na Lei 108, que trata do funcionamento dos fundos; e o de número 9, que não vingou, e que trataria exatamente do servidor público. A emenda 20 trazia, nos seus temas, muitas das preocupações desses debates. Ela foi importante porque, pela primeira vez, trouxe uma abordagem específica sobre a previdência complementar, mas em alguns casos acho até que foi detalhista demais, como por exemplo ao colocar a questão da relação contributiva na constituição.

II – A reforma poderia ter avançado mais do que avançou?
DS – Em alguns casos sim, como no caso da previdência do funcionário público. O ponto central desse projeto era a previdência capitalizada no modelo de CD puro, e isso prejudicou o debate. Teve também a questão da expressão “previdência privada de natureza pública”, que eu entendia simplesmente como o processo de governança do fundo, com o setor público exercendo o controle da entidade através dos órgãos estatutários e com a indicação dos seus representantes, mas sem que isso impedisse de ter uma gestão profissionalizada. Porém, isso também prejudicou o debate. Acho que nós perdemos, naquela ocasião, uma chance única de ter uma previdência mais adequada, talvez com um cobertor mais curto, mas em bases equilibradas. Mas, evidentemente, quando falamos em estabelecer a aposentadoria por idade e eliminar essa aposentadoria por tempo de contribuição, isso é um debate muito difícil e complicado.

II – Como foram as discussões que resultaram na reforma?
DS – O ano de 1999 foi um ano de muita discussão, acho que o que perdemos no período crítico de 1996 nós ganhamos em 1999 com esses projetos. As pessoas que citei anteriormente tiveram participação decisiva nessas discussões, permitindo um aprofundamento técnico dos debates travados. Por exemplo, na primeira versão do projeto a questão da paridade valia para tudo, mesmo para os financiamentos do passado. Me lembro que o deputado Manuel Castro disse, de repente, numa reunião, que ali nós poderíamos estar construindo uma situação completamente desestabilizadora do sistema e propôs que se tratasse as contribuições normais dentro da paridade e as extraordinárias dentro de uma política contratual de financiamento desses planos. Isso foi muito importante para o sistema. Uma outra questão dentro da lei complementar que conseguimos definitivamente abolir foram as terríveis aplicações compulsórias. Ficamos reféns dessa política de compulsoriedade de 1978 até 1994, quando os limites mínimos foram eliminados através de uma resolução, mas foi só com a Lei 109 que isso acabou definitivamente. Outra discussão fundamental desse período foi que as ações deixaram de ser focadas na entidade como um todo e passaram a ter o foco nos planos. Isso quer dizer que, dentro de uma entidade com vários planos, se um plano por acaso não vai bem você não precisava intervir na entidade e inviabilizar os que estavam indo bem, intervinha só no plano que não está bem, vai lá e tenta restaurá-lo. E também conseguimos mudar a questão da responsabilização, que passou a ser da pessoa física, do gestor da entidade como um todo.

II – Foi uma transição tranquila do modelo antigo para o novo modelo de lei?
DS – Nós fizemos uma revisão completa na Lei 6435, que vigiu por praticamente 30 anos, preservando direitos e de forma tranquila. Nossas leis hoje são modernas, com base nas melhores adotadas internacionalmente. Tivemos os institutos todos definidos, de portabilidade, benefício proporcional definido, auto-patrocínio, resgate e todas as figuras de um bom plano, todas regulamentadas dentro de um processo natural. O Brasil hoje, nesse arcabouço legal, é exemplo internacional.

II – A luta pela imunidade tributária dos fundos de pensão é tida como a grande luta do sistema. Como foi esse processo?
DS – Desde de 1983, com a transformação da imunidade tributária em isenção tributária, tínhamos uma pendência muito grande na parte tributária com o nosso judiciário. Lembro do decreto 2065/83 até hoje, que foi comunicado no congresso da Abrapp de Porto Alegre. Ele foi muito sutil, dizia que o artigo 19 que nos classificava como entidade de natureza de assistência social não se aplicava para as entidades de previdência complementar fechada. Foi o maior questionamento judicial que nós tivemos. Em 2001, quando o Supremo Tribunal Federal julgou o caso da Ceres, de Brasília, e perdemos por uma decisão apertada, de 6 a 4, isso valia para um estoque de R$ 12 bilhões que estavam provisionados. Na verdade, a decisão do STF não acabou totalmente com a imunidade tributária como as pessoas pensavam, pois a mantinha quando a contribuição era feita exclusivamente pelo patrocinador, mas realmente perdemos uma batalha importante. A solução foi negociar, porque não podíamos simplesmente entregar os R$ 12 bilhões provisionados. Era 2001, já estávamos entrando num período eleitoral, então negociamos com o Secretário da Receita Federal da época, Everaldo Maciel, e conseguimos um meio termo através da medida provisória 2222, do chamado RET, que não retornou a isenção total mas estabeleceu um limite de tributação da ordem de 12% aos fundos que desistissem das ações. Com a desistência, os fundos embolsaram e transformaram em resultados metade do valor provisionado e os outros R$ 6 bilhões o governo levou. Foi só em 2004, com o governo Lula, que conseguimos realmente uma legislação adequada, através da lei número 11053, igualando os fundos de pensão à previdência aberta em termos de tributação.

II – Isso conseguiu barrar o processo de migração dos fundos de pensão para entidades abertas, que estava existindo?
DS – Sim, diminui muito. A migração da Caemi, a primeira fundação do setor privado, impactou muito o sistema. Também os debates sobre a migração da PSS, que acabou não acontecendo, mas havia um clima de desestímulo. Naquela época, aplicar num fundo de investimentos tinha mais vantagens tributárias do que aplicar numa previdência fechada. Era um absurdo.

II – Isso era intencional, no sentido de redirecionar a previdência brasileira para esse modelo aberto?
DS – Eu não diria redirecionar, mas como já disse havia o assédio do modelo chileno e havia um distanciamento muito grande do governo em relação aos fundos fechados. A previdência complementar fechada não era prioridade do governo FHC. Aliás, pelo contrário, tivemos sérios problemas. Acho que começou em 1994, no episódio das NTNs, quando o governo quis empurrar compulsóriamente 30% desses papéis para os fundos. Tivemos um embate muito duro com o governo, fomos para a justiça contra essa compulsoriedade. O ministro da fazenda era o Fernando Henrique, acho que desde ali já se criou um distanciamento grande. Depois disso, durante dois mandatos de governo, os fundos de pensão foram vistos como importantes mas não se tinha uma política de fomento, de incentivo, de prioridades. Tivemos sempre uma SPC pouco estruturada, que não participava dos grandes fóruns.

II – Quando isso começou a mudar?
DS – O começo da virada aconteceu em 2002, quando os candidatos presidenciais estavam apresentando suas plataformas. Nós procuramos os candidatos, e na época o Lula que já era assessorado pelo Gushiken, Mantega, Berzoini, assumiu o compromisso de priorizar a previdência complementar fechada no governo dele. Ele assumiu esse acordo no plano diretor de mercado de capitais. E quando ganhou as eleições fez isso, efetivamente, levando pessoas que conhecem profundamente o sistema para cargos importantes. Em 2003, o Gushiken vira ministro da comunicação e assuntos estratégicos, o Berzoini vira ministro da previdência, o Adacir é levado para a SPC que ganha um outro status. Inclusive no próprio governo, o nível de interação e de relacionamento muda. A partir daí se começou a construir uma previdência complementar com regras estáveis.

II – Que medidas foram importantes?
DS – A primeira ação desse time foi recompor o CGPC, que tinha uma participação pouco ativa. A partir daí, toda parte de regulamentação da lei de 2001, passou a ser feita na CGPC com a participação de representantes de entidades, de patrocinadores, de participantes e de órgãos de governo. Entre 2003 e 2006 nós construímos toda uma regulamentação da previdência complementar, para que ela pudesse ser operacionalizada. Eu cito, entre as medidas fundamentais que o CGPC produziu, a da previdência associativa. Até já existia, mas de uma maneira muito tímida, pouco regulamentada e não tinha uma política de incentivo. Fizemos uma verdadeira cruzada junto às entidades associativas e sindicatos, a Abrapp esteve nisso, a SPC esteve nisso, consultores foram contratados. Sabíamos que a sociedade organizada tinha condições de ter uma previdência instituída. Essa foi uma grande sacada e que está se mostrando que a coisa tem futuro. Foi dessa época, também, a definição desse tratamento tributário adequado que temos. Considero o modelo tributário holandês muito avançado, mas nós estamos na frente.

II – Hoje mais da metade dos planos já é de contribuição definida. Como foi o processo de migração de BD para CD?
DS – Em meados dos anos 1980, no período agudo da crise, se começou a ver que havia um risco enorme nos planos de benefício definido e que não dava para garantir um cenário de total estabilidade num plano de longo prazo. O plano tinha que ser alguma coisa exequível, precisava ser socialmente justo mas também economicamente viável. Começou a se pensar no CD. Tenho a impressão que o CD foi uma alternativa interessante e necessária para tranquilizar as empresas, trazendo um pouco mais de equilíbrio na gestão desse risco entre participantes e empresas.

II – Qual era a grande preocupação?
DS – Com a crise dos anos 80 as empresas não estavam crescendo e boa parte dos planos estava fundamentada na chamada geração futura, imaginando que sempre haveria uma nova geração entrando, gente nova sempre retroalimentando e financiando o futuro. De repente isso não estava acontecendo, havia a necessidade de rever. Acho que isso foi salutar, como foi salutar também evoluir para os fundos multipatrocinados, como foi a vinda do planos instituídos. Até acho que, no futuro, não vamos mais discutir BD ou CD, acho que o participante vai escolher exatamente o que ele quer. Se ele quer renda e em que quantidade, se quer saúde, qualidade de vida, educação. Ele vai montar o seu portfólio.

II – Para finalizar, você poderia falar um pouco sobre a participação dos fundos de pensão nos processos de privatização? Muita gente diz que houve, à época, muita interferência política nas participações dos fundos de pensão. É verdade?
DS – Existe muita lenda nesse sentido. Nós já vivíamos um processo de governança nesses fundos, os trabalhadores desses fundos já tinham uma participação ativa. No processo de privatização que estava sendo consolidado, e a história mostrou que onde os fundos participaram os retornos foram expressivos, as decisões foram tomadas com base empresariais e negociais. Evidente que os grandes projetos também não tinham muitos lados, ou você estava de um ou estava de outro, e sempre quando estava de um lado você descontentava o outro que apontava “lá houve interferência política”. Isso é do mercado. Mas posso dizer que foi importante essa participação, as empresas puderam manter o seu caráter nacional com a ajuda dos fundos de pensão. Vá perguntar para o participante da Previ se ele não está satisfeito com a participação na Vale, com os resultados que a Usiminas trouxe.