Edição 114
Vinicius Carvalho Pinheiro, diretor do departamento de regimes da Previdência
O País tem um dos sistemas previdenciários do setor público mais generosos do mundo, que vem comprometendo recursos que poderiam estar sendo usados em áreas como saúde, educação e combate à violência. “Na maior parte dos Estados, o comprometimento da folha com o pagamento dos inativos é superior a 30%”, diz o diretor do departamento de regimes da Previdência, Vinícius Carvalho Pinheiro. Nesta entrevista, o executivo fala, entre outras questões, da evolução dos regimes próprios nos últimos anos, da Lei de Compensação Previdenciária, de aspectos financeiros e dos custos na criação de um regime próprio para os municípios. “Defendo o Regime Único porque se a previdência tem um aspecto contributivo e deve ser organizada de acordo com critérios atuariais, não há porque distinguir um trabalhador privado de um servidor público.”
Investidor Institucional – Como você avalia a situação dos regimes próprios de estados e municípios?
Vinicius Carvalho Pinheiro – Nos últimos três anos houve um avanço expressivo em relação à organização dos regimes próprios de previdência. Se nós voltarmos ao tempo, antes de 1998 praticamente não existia a discussão sobre previdência no serviço público. De lá prá cá, aprovamos a Emenda Constitucional, aprovamos a Lei 9.717 que dá normas gerais aos regimes próprios de previdência, aprovamos a Lei de Compensação Previdenciária, ou seja, aprovamos uma série de atos legais que normatizam a questão. Além disso, criamos um departamento exclusivo para tratar desse ponto dentro do Ministério, criamos o Conselho Nacional de Dirigentes de Previdência – Conaprev, que institucionalizou de vez a discussão da previdência sobre o serviço público.
II – E como está a evolução dos regimes próprios junto aos estados e municípios?
VCP – Nada menos que 14 estados já evoluíram em relação à organização dos seus regimes próprios, seja por meio de aumento de alíquota ou por meio de criação de fundos previdenciários. No âmbito municipal, já temos 3.100 municípios com regimos próprios criados. Agora, ainda há muito para avançar. É necessário que haja continuidade do processo de reforma, especialmente para estados e municípios, reforma esta que deve ter uma base constitucional.
II – Que tipo de reforma seria necessária?
VCP – Uma reforma que retire privilégios. É impossível que continuemos oferecendo os regimes previdenciários mais generosos do mundo, pagando benefícios igual ao último salário, garantindo benefícios vinculados aos salários da ativa.
II – Como é o pagamento dos benefícios nos outros países?
VCP – Na maioria dos países desenvolvidos da Europa a relação entre o último salário e o benefício, que chamamos de taxa de reposição, varia entre 60% a 80% do último salário, ficando numa média de 75%. E são países, em geral, mais ricos que nós, têm um nível de renda muito superior ao nosso.
II – Como eles calculam o valor do benefício?
VCP – A partir do número de anos trabalhados. Eles têm um coeficiente que multiplicam pela quantidade de anos trabalhados, garantindo um mínimo, que em geral é de 50%, e podendo ir até o máximo, que em geral é de 80%.
II – Quer dizer, benefícios bem menos generosos que os nossos!
VCP – Claro, nós pagamos benefícios muito superiores à Suécia, à França, à Inglaterra, ao próprio Estados Unidos, que são considerados países de nível de bem estar muito evoluídos. E veja que são países em que o nível de saúde, de educação, de assistência social para a população é muito superior ao nosso, além de serem países mais idosos, onde o percentual da população idosa é muito superior ao nosso. Apesar de ainda não termos resolvido os nossos problemas básicos, como educação, saúde, violência, segurança, nos damos ao luxo de oferecer um sistema de previdência tão oneroso para o estado e tão generoso aos nossos servidores. Entre os países da OCDE, somente a Espanha e a Grécia pagam benefícios superiores aos nossos.
II – Algumas pessoas defendem que, exatamente porque o Brasil tem problemas nas áreas de saúde, educação, se justificaria um benefício maior. O que o sr. acha?
VCP – Eu usaria o argumento contrário. É justamente pelo fato de nós estarmos drenando expressivos recursos para a previdência de servidores públicos é que temos maiores restrições em relação a isso, saúde, educação. Não sobra dinheiro para atender às demandas básicas da população. A função do Estado não é sustentar os servidores, é prover serviços à população que é quem o financia.
II – Como está a concessão dos Certificados de Liberação Previdenciária, os CRP? Quantos municípios já receberam?
VCP – Cerca de 60% dos municípios está regular em relação ao que determina a Lei 9.717, e portanto tem disponível o Certificado de Liberação Previdenciária. Isso quer dizer que pelo menos 60% dos municípios estão em dia com a previdência. Eu digo pelo menos porque muitos que ainda não tem o CRC também podem estar em dia, ou quase em dia!
II – Como se conseguiu isso?
VCP – Veja, o que nós pedimos foram coisas básicas, coisas elementares na organização do sistema previdenciário. Primeiro, tem que ter contribuição, é inimaginável você pensar um sistema previdenciário sem contribuição. Segundo, as contas têm que ser separadas, não pode haver desvios de recursos da previdência para outras áreas como saúde, assistência financeira. Terceiro, tem que publicar os demonstrativos previdenciários, ou seja, garantir transparência às contas da previdência. Quarto, tem que assegurar o acesso das informações do sistema aos servidores. Então, são mecanismos que podem ser implementados institucionalmente, e grande parte deles nem depende de leis para serem feitos e é por isso que vários municípios avançaram.
II – Dos vários ítens pedidos, qual o mais difícil de conseguir?
VCP – Por incrível que pareça, um dos itens que é mais irregular nos estados e municípios é a publicação dos demonstrativos, que é publicar quanto você gasta, quanto você arrecada e qual o seu déficit. É uma questão até de exercício da cidadania, as pessoas têm o direito de saber o quanto se gasta com servidores, qual é o déficit, qual é o montante que está sendo drenado de outras áreas para financiar isso. Então, muitos municípios hoje não têm o CRP porque não publicaram os demonstrativos, ou seja, porque estão sonegando essas informações aos seus servidores e à população.
II – Você disse anteriormente que 3.100 municípios já criaram regimes próprios. Você acha realista este número? Os pequenos têm condições de manter regimes próprios?
VCP – O regime próprio é algo oneroso do ponto de vista administrativo, e se um prefeito deseja ter um regime próprio ele tem que estar ciente que precisa ter uma estrutura organizacional para isto. Ele precisa ter um monitoramento atuarial constante, ele precisa observar a legislação vigente, no caso a Lei 9717 e a Lei de Responsabilidade Fiscal, ficando sujeito às punições previstas em lei caso não esteja atento à essas observações. Então, não é trivial você organizar um regime próprio.
II – Uma das críticas que existe é que alguns prefeitos optam pelo regime próprio exatamente para não pagar o INSS.
VCP – É um tipo de atitude que, a meu ver, tem que ser pensada, tem que ser calculado. Ou seja, nós asseguramos que se um município estiver no INSS, em nenhum momento da sua existência ele vai pagar mais do que 20% da sua folha com inativos e pensionistas. Por quê? Porque essa é a contribuição para o INSS. Então, todos os municípios que não têm regime próprio necessariamente terão como limite de comprometimento da folha com a previdência esses 20%. Ou seja, o máximo que ele tem é a contribuição que ele faz, que é de 20%, e quem vai pagar o benefício é o INSS.
II – Mas os municípios com regimes próprios pagam menos!
VCP – Não, a maioria dos estados com regimes próprios gasta mais do que isso para custear os seus inativos previdenciários. O comprometimento hoje está superior a 30%, e em alguns estados como Rio Grande do Sul está em 50%, em alguns 40% mas, em geral, na maior parte dos estados o comprometimento da folha com inativos previdenciários é superior a 30%. Ou seja, se eles tivessem ficado no INSS eles não estariam gastando mais que 20%. Então essa é uma conta que tem que ser feita pelo prefeito, se algum dia ele for pagar mais do que 20% da sua folha com inativos e pensionistas é melhor que ele continue com o INSS.
II – Já há municípios gastando mais com inativos do que com ativos?
VCP – Os municípios estão numa situação mais confortável que os estados. Seus regimes são mais novos, a maior parte surgiu a partir de 1991, então têm poucos inativos. Mas isso não significa que eles tenham que adiar soluções, muito pelo contrário, é mais fácil começar agora, criar regimes sustentáveis agora, do que depois correr atrás do tempo perdido como estão fazendo os estados e a União.
II – Qual a situação dos estados mais complicados?
VCP – O estado mais complicado é o estado do Rio Grande do Sul, que deve gastar algo como 50% da folha com inativos; depois vem o Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, São Paulo e Pernambuco, com uma folha de aproximadamente 40%, e depois os outros estados, que estão na faixa de 20% a 30%.
II – Com relação a compensação previdenciária do INSS, como está isso?
VCP – O processo tem avançado bastante, a gente já está desembolsando R$ 100 milhões com a compensações previdenciária.
II – Quantos regimes próprios já estão recebendo?
VCP – Pouco mais de 100 municípios. Mas a compensação previdenciária, mais do que uma injeção de recursos nos regimes próprios, é uma forma de se organizar as suas bases de dados. Muitos estados e municípios que aderiram à compensação estão recebendo nas suas secretarias os disquetes do sistema de óbitos, podendo limpar das suas bases de dados as pessoas que morreram. Outros tiveram que fazer uma verdadeira reorganização por ocasião do recadastramento, para saber quanto o INSS devia, e essa reorganização permitiu gerar economias com cancelamento de benefícios pagos indevidamente, reversão de aposentadorias concedidas indevidamente etc.
II – Nesse recadastramento quantos, em média, deixam de comparecer?
VCP – Isso eu não sei. Mas eu sei que o estado de Goiás, por exemplo, está economizando 5% na folha por mês por causa do recadastramento que foi feito, como resultado da limpeza de base. Ou seja, pessoas que receberiam indevidamente, duplamente. Em Pernambuco, a economia está sendo de 3% a 5%. Então, é um trabalho que mais do que se paga.
II – E além do aspecto financeiro, quais os benefícios do recadastramento na questão atuarial?
VCP – Esse é um aspecto fundamental, pois dá capacidade de previsibilidade aos gastos previdenciários. Eu costumo dizer que, se houvessem feito a conta em 1991, provavelmente não haveria essa conversão para Regime Jurídico Único. Mas faltou, na época, quem dissesse o seguinte: a instituição do Regime Jurídico Único vai custar tanto para esta geração e tanto para as próximas. Então, faltou alguém dizer que caso aquela decisão fosse tomada, a conta para nós seria de R$ 45 bilhões hoje, ou seja, 4% do PIB. Esse valor é o equivalente à necessidade de financiamento da previdência pública no ano de 2002.
II – Quer dizer, a reestruturação permite a tomada de decisões mais racionais?
VCP – Exatamente. O que nós estamos querendo fazer é justamente evitar que esses erros se repitam, queremos quantificar, saber qual é o custo das decisões e qual é o custo das não decisões. Então, para isso serve o critério atuarial, você projetar no futuro o que vai acontecer com as finanças do município caso não haja reforma, ou caso se conceda benefícios superiores aos salários.
II – As várias medidas que estão sendo implementadas na previdência do setor público estão tornando-a muito parecida com a previdência do setor privado. O objetivo é, em algum momento, uma convergência entre elas?
VCP – Do ponto de vista político, há uma tendência clara à convergência das regras da previdência pública com as regras da previdência privada. Isso acontece por um motivo muito simples: nenhum patrão paga um plano melhor para o seu empregado do que para si próprio. E se hoje isso acontece no setor público é porque a sociedade, que é a patroa dos funcionários públicos, não tem informação ou não tem a dimensão das distorções que existem. A sociedade não sabe dos recursos que estão sendo drenados, e que eles poderiam, inclusive, ser utilizados para melhorar os benefícios do outro sistema. Então, no médio a longo prazo, há uma tendência inexorável de convergência dos dois sistemas.
II – Mas não acontecerá sem muitas resistências!
VCP – De certa forma isso já está na Emenda 20 e na Emenda 19, que é a reforma administrativa. Elas induzem a que grande parte dos servidores contratados na modalidade de emprego público sejam pelas regras do INSS e aqueles que forem contratados pelas regras do regime próprio que tenham um teto, o mesmo teto do INSS, e acima disso que sejam organizados pelo regime de previdência complementar. Obviamente, isso depende da aprovação do PL 9, mas a perspectiva é que para os futuros servidores já haja uma convergência muito clara entre as regras.
II – Esse cenário não está muito distante?
VCP – Eu até acho que poderíamos dar um passo maior, mas isso obviamente depende dos humores pós-eleitorais dos partidos que vierem a ganhar as eleições, e tentar botar um Regime Único já para a geração presente de servidores. Claro que garantindo os direitos adquiridos e aquisições dos servidores presentes.
II – Então, você é defensor do Regime Único?
VCP – Sim, eu acho que se a previdência tem um aspecto contributivo e ela dever ser organizada de acordo com critérios atuariais, não há porque distinguir um trabalhador privado de um servidor público. É verdade que essas categorias podem ser distintas do ponto de vista da política de pessoal, ou seja, pode valorizar mais o servidor, dar outros benefícios enquanto ele estiver ativo. Mas, do ponto de vista previdenciário, a regra deve ser pagou levou, e o que se leva é proporcional ao que se paga. Acho que essa é a regra que deve valer para todas as pessoas.