Edição 169
Fabio Bertranou, do Chile: “fundações devem diversificar”
No mês em que a Federação Internacional de Administradoras de Fundos de Pensão (Fiap) realiza no Chile o seminário internacional sobre as perspectivas de investimentos do sistema – com apoio e participação de instituições brasileiras –, a Revista Investidor Institucional conversa, com exclusividade, com o renomado especialista em seguridade social, Fabio Bertranou, que há cinco anos trabalha na Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Santiago, no Chile. O argentino tem uma visão muito clara sobre a reforma previdenciária implantada no Chile: foi positiva, teve seus efeitos colaterais e seria pior não tê-la feito.
Economista da Universidade Nacional de Cuyo, na Argentina, e doutor em economia pela Universidade de Pittsburg, nos Estados Unidos, Bertranou fala sobre a importância de trabalhar com sistemas previdenciários mistos – com componentes não-contributivos e contributivos, administração pública e privada e aportes definidos e indefinidos. Ele trata, também, da urgência de aumentar as idades para aposentadoria e da necessária adequação dos portfólios dos fundos de pensão a investimentos menos conservadores, isto é, além dos títulos públicos.
Bertranou, 39 anos, faz parte, ainda, do time que defende o aumento de investimentos dos fundos no exterior. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Investidor Institucional – O Chile implantou uma reforma previdenciária há 25 anos, quando do governo militar de Augusto Pinochet. Quais são os efeitos hoje?
Fabio Bertranou – O custo fiscal da reforma estrutural, que transformou o sistema previdenciário chileno de repartição em capitalização e introduziu administradores privados, foi alto. Na média, o déficit previdenciário suportado pelo governo foi de cerca de 5% do PIB (Produto Interno Bruto).
Não obstante, o custo de não reformar o sistema também teria sido elevado. Mas, no caso do Chile, é importante enfatizar que a reforma de 1981 foi precedida por uma importante reforma paramétrica em 1979 das caixas previdenciárias, que trouxe importantes conseqüências positivas do ponto de vista financeiro.
II – Quais foram os principais méritos da reforma?
FB – A virtude de unificar todos os sistemas em um programa nacional de pensões. Só as forças armadas ficaram com um sistema próprio de previdência, diferentemente de outros países da região onde os servidores seguiram com sistemas próprios mas em condições mais vantajosas, como Argentina, Brasil, México e Colômbia. Além disso, a privatização da administração e o estabelecimento de aportes definidos e individuais permitiram produzir uma massa de recursos que forçou o desenvolvimento do sistema financeiro e a criação de uma nova institucionalidade da indústria de seguros, com impacto evidente no financiamento do crédito imobiliário.
II – E as principais falhas?
FB – Esse novo sistema é caro pela forma como a indústria se estruturou e pelas regras de concorrência. Além disso, deixa uma parte importante do mercado de trabalho sem proteção. Isto é, a reforma do sistema não foi estruturada para atender a situação dos trabalhadores de baixa renda, nem tampouco daqueles com histórico de trabalho irregular ou com interrupções no período de acumulação de recursos. Portanto, o componente não-contributivo, no meu entender, é um dos grandes desafios da reforma no Chile.
II – O único caminho para uma boa reforma previdenciária passa pela migração do regime de repartição para o de capitalização?
FB – Não. Atualmente, existe um importante consenso de que os sistemas de pensões têm que ter uma estrutura mista. Isto significa que devem combinar componentes não-contributivos e contributivos, administração pública e privada e, finalmente, contribuição definida e não definida.
Existem discrepâncias do tamanho relativo que cada componente deve ter.
É indiscutível que o componente “capitalização” cresceu e o problema existe quando este aumenta menos que o componente “solidário”. Então, deve existir uma complementaridade entre ambos e não uma substituição.
II – A reforma da previdência no Chile é um exemplo da privatização do sistema. Não seria recomendável deixar os recursos sob administração do governo, mudando só as formas de contribuição e acumulação dos recursos?
FB – A privatização obrigou à criação de uma nova institucionalidade que permite tornar transparente muitas das funções tradicionais da seguridade social que, no passado, geralmente não eram muito visíveis. Os segurados conheciam limitadamente seu histórico previdenciário e atualmente isso tem mudado. De qualquer maneira, para atingir este objetivo e modernizar a seguridade social a privatização não é necessária.
Estas metas podem ser obtidas perfeitamente dentro de um esquema administrado publicamente.
II – Uma das propostas da nova presidente do Chile, a socialista Michelle Bachelet, é reduzir as comissões cobradas pelas “Administradoras de Fondos de Pensiones” (AFPs). A proposta é viável?
FB – O objetivo do governo é melhorar a concorrência, mas não está clara a melhor forma para se fazer isso. Uma proposta é permitir o ingresso de novos atores, como os bancos. Ocorre que a administração de fundos de pensões pareceu ser uma indústria com importantes economias de escala, no entanto, ainda não se conhece bem onde essas economias se potencializam. Na arrecadação? Na manutenção das contas previdenciárias? Na administração dos investimentos? A Comissão Consultiva Presidencial de Reforma da Previdência Social irá elaborar um diagnóstico e fazer propostas acerca do tema.
II – O Brasil deveria inspirar sua reforma previdenciária nos erros e acertos da feita no Chile?
FB – No caso do Brasil, não creio que o Chile seja um modelo a seguir. Um dos principais argumentos para introduzir a capitalização no Chile foi que isto traria múltiplas vantagens, entre elas a redução do gasto fiscal – o que foi inválido porque foram geradas novas responsabilidades fiscais devido à leve redução da cobertura do sistema contributivo e devido à garantia de uma pensão mínima que se financia com recursos fiscais. No entanto, o Brasil já conta com um desenvolvimento relativamente alto da previdência complementar.
II – Há quem considere que a reforma da previdência chilena não foi muito satisfatória, tanto que mais de 50% da população não tem direito nem mesmo à aposentadoria mínima estatal. Qual é a sua avaliação a respeito?
FB – Certamente. De acordo com estudos da Superintendência das AFPs, as características do mercado de trabalho do Chile, conjuntamente com a forma em que se definem as condições de direito das prestações públicas, determinaram que só 50% dos beneficiários do sistema contam com um benefício acima do mínimo. Isto se agrava com as mudanças que têm ocorrido recentemente no mercado de trabalho, com o aumento da rotação de empregos e, em alguns casos, com a precarização dos postos de trabalho.
II – Se dois colegas se aposentam hoje no Chile e um aderiu ao esquema privado e o outro não, o segundo tem direito a uma aposentadoria superior ao dobro da do primeiro. Por quê?
FB – Isto se refere a um problema específico que foi gerado nos empregados do setor público onde os que optaram pelo regime de capitalização passaram a realizar aportes menores, portanto tinham maior salário. Desta forma, aqueles que optaram pelo antigo regime público hoje estão recebendo maiores benefícios. Este “dano previdenciário” não foi adequadamente previsto quando estas possibilidades foram oferecidas aos trabalhadores, dado que naquele momento era mais atrativo mostrar uma alta adesão à capitalização permitindo que os trabalhadores recebessem um salário maior.
II – Um trabalhador chileno que consegue acumular contribuições suficientes para se aposentar sai do mercado com uma renda média de 39% da que tinha quando estava ativo. A que se deve isso?
FB – Isso têm numerosas explicações e dependem do tipo de trabalhador que estamos analisando. As mulheres, por exemplo, recebem benefícios menores que os homens com igual histórico de trabalho porque são mais longevas e, ao receberem uma renda vitalícia, as companhias seguradoras as castigam com um prêmio maior. Os outros problemas têm a ver com os baixos salários, com a alta rotação no emprego e até com as interrupções no trabalho que experimentam, por exemplo, as mulheres quando são mães.
II – Como o Chile se insere em um contexto mundial de debate em torno do colapso do sistema previdenciário devido a populações com idade avançada, administrações pouco eficientes e generosos benefícios?
FB – O Chile tem uma vantagem sobre os outros países da América Latina. Conta com um serviço civil muito bom e com baixa corrupção. As instituições e o governo, em geral, são muito mais efetivos que nos outros países da região. Além disso, tem havido a continuidade, tanto nos governos militares como nos democráticos, das políticas econômicas. Boa parte do “êxito” previdenciário, independentemente se é público ou privado, tem a ver com isso e com outras reformas institucionais.
II – E quanto ao tema demográfico?
FB – O Chile passará a ser um dos países mais velhos da região, junto com Uruguai, Argentina e Cuba, e isso representa um importante desafio.
Teremos que ajustar paulatinamente as idades de aposentadoria, aumentar os recursos para a proteção social na velhice e elevar o tempo de trabalho. Não existe uma única política de combate ao problema demográfico, mas, ao contrário, deve haver um conjunto de políticas para tratá-lo. Na realidade, a longevidade não deve ser tratada como um problema, mas como um sinal de desenvolvimento social.
II – Alguns críticos dizem que as reformas previdenciárias apoiadas pelo Banco Mundial não alcançaram totalmente seus objetivos. Qual sua opinião?
FB – Creio que o principal problema foi terem colocado demasiada atenção na reforma que o Banco Mundial denomina como segundo pilar, ou seja, o componente contributivo. Isto implicou que não se priorizou o componente básico ou solidário e a cobertura aumentou. Alguns países remediaram este problema parcialmente estendendo o componente não-contributivo ou os programas especiais – no caso do Brasil, as pensões rurais; no caso do Chile, o programa Pasis (de pensões assistenciais). Além disso, os níveis de cobertura previdenciária parecem estar definidos pelas características estruturais do mercado de trabalho e não pelo método de financiamento do sistema de pensões.
II – No Brasil, aposentadorias precoces e benefícios exagerados por doença e invalidez são grandes problemas. Como o Chile enfrenta essas questões?
FB – Em geral, numerosos países têm o problema de aposentadoria em idades precoces e os programas de invalidez são desvirtuados. O Chile enfrentou por muitos anos o problema de aposentadoria antecipada. A maioria das pensões pagas pelas AFPs são, na realidade, pensões antecipadas, ou seja, para mulheres com menos de 60 anos e para homens com menos de 65 anos. Isto produziu benefícios muito baixos, próximos à pensão mínima.
II – Por que isto ocorreu?
FB – Na realidade, havia uma forte força de venda orientada a atribuir aposentadorias antecipadas, pois as comissões de renda vitalícia das companhias seguradoras são relevantes. Então, na prática, ao se aproximarem da idade de aposentadoria e ao enfrentarem problemas no mercado de trabalho, muitos trabalhadores estavam utilizando o sistema previdenciário como seguro-desemprego. Recentemente foram modificados estes regulamentos e agora é mais difícil consentir aposentadoria antecipada.
II – Outra grave questão da previdência social no Brasil é o trabalho informal. Como essa questão é enfrentada no Chile?
FB – A incidência do trabalho informal no Chile é menor que no Brasil e alcança cerca de 35% da população ocupada. Para estes trabalhadores está previsto que estejam cobertos por regimes não-contributivos. O grande desafio está naqueles trabalhadores que alternam entre a formalidade e a informalidade e que, além disso, têm baixas receitas.
Uma solução seria outorgar uma pensão mínima escalonada de acordo com os anos de contribuição deste trabalhador. Atualmente, paga-se pensão mínima somente a quem contribuiu por, pelo menos, 20 anos.
II – Como são as regras de investimentos da previdência complementar no Chile?
FB – Assim como outros aspectos do sistema previdenciário, este deve ser constantemente avaliado e ajustado à nova realidade econômica e financeira. A rigidez nos portfólios busca assegurar certos padrões de minimização do risco, contudo não se deve descartar que há necessidade de aumentar os retornos esperados, especialmente para as gerações mais jovens.
II – E o que o Chile tem feito nesse sentido?
FB – O Chile tem implementado um sistema de fundos múltiplos que permite que os jovens estejam em fundos mais agressivos e os adultos em fundos mais conservadores. Evidentemente que isto vem acompanhado de um custo, porque para uma administradora é mais cara administrar cinco fundos do que um único. Também para o segurado representa um custo adicional, sobretudo em um contexto com informação escassa e de baixa educação previdenciária.
II – Os fundos de pensão do Chile movimentam cerca de 60% do PIB, mas investem apenas 14% no setor produtivo. No Brasil, a situação não é muito diferente, até por conta da elevada taxa de juros. Como reverter esse cenário?
FB – O Chile foi progressivamente aumentando a diversificação do portfólio de investimentos reduzindo a participação dos instrumentos de dívida pública. Mas isso só pode ser obtido em um contexto macroeconômico onde exista equilíbrio ou superávit fiscal. Do contrário, sempre existirá a tentação do governo de financiar o déficit com recursos provenientes dos fundos de pensão, colocando quase que compulsivamente dívida no mercado. Isto foi o que ocorreu na Argentina, que logo desembocou na crise de 2001-2002. Além disso, no Chile, a Superintendência das AFPs cumpriu um papel significativo evitando a interferência política.
II – A lei brasileira restringe os investimentos dos fundos de pensão no exterior, assim como ocorre na legislação previdenciária de outros países.
Essa limitação poderia ser abrandada?
FB – Esta pode ser uma alternativa para compensar a entrada de capitais gerada por muitos países da região e que está depreciando a taxa de câmbio. No Chile, o elevado preço internacional do cobre responde por ingressos extraordinários que conduzem o dólar a preços muito baixos prejudicando a competitividade de alguns setores exportadores. A diversificação do portfólio em investimentos denominados em dólar pode colaborar para compensar este problema macroeconômico e reduzir o risco de um portfólio formado unicamente de instrumentos nacionais.