Corrida contra o tempo

Edição 163

Entrevista Nelson Machado: “Vamos recuperar R$ 7 bilhões este ano”

Se existe uma vidraça frágil, bastante apedrejada e que tem exposto uma das fraquezas do governo Lula é a Previdência Social. De um lado, a incapacidade de acabar ou mesmo de conter as fraudes – herança de vários antecessores. Não se consegue criar programas de informática que dificultem a ação de funcionários corruptos ou de pessoas que forjam pensões e aposentadorias e que volta e meia provocam rombos de dezenas e até centenas de milhões de reais. Do outro, o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), que enfrentou uma longa greve este ano, enquanto idosos e assistidos são humilhados em filas intermináveis em busca de meras informações ou de benefícios cada vez mais dificultados pela burocracia de uma máquina ineficiente.
Não bastasse, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios colocou sob suspeita os maiores fundos de pensão patrocinados por estatais, cuja fiscalização cabe a um órgão do Ministério da Previdência Social, a Secretaria de Previdência Complementar (SPC).
Desafios que o quarto ministro da Previdência do governo petista, Nelson Machado, tem de enfrentar e tentar, ao menos, amenizá-los em um curto espaço de tempo, uma vez que o atual governo só tem pela frente pouco mais de um ano de poder. Não será fácil, quando se considera que seus três antecessores, políticos de carreira, pouco conseguiram fazer.
Nesta entrevista – condicionada a ser respondida por e-mail, sem a possibilidade da réplica ou de outros questionamentos –, o ministro confessa que, na atual gestão, pelo pouco tempo que resta, tentará principalmente melhorar o atendimento ao segurado. Machado, que assumiu a pasta no final de julho, respondeu à entrevista poucos dias depois de lançar o programa de recadastramento dos segurados. No primeiro momento, pretende verificar 2,6 milhões de aposentadorias consideradas “vulneráveis” – com indícios de irregularidades. A seguir, os principais trechos:

Investidor InstitucionalDe que forma pode ser superado o desgaste da Previdência junto à opinião pública?
Nelson Machado – A credibilidade da Previdência Social é, sem dúvida, o bem mais importante a ser preservado. Dela decorre o sucesso de uma das mais importantes metas de nossa gestão: a conquista de novas filiações. A opinião pública, com razão, critica a qualidade do atendimento que a Previdência dispensa em muitas de suas agências. E a prioridade de melhorar a qualidade de atendimento é ponto número um nessa gestão.
Nesse contexto, está a erradicação de quaisquer estímulos à sonegação de contribuições. Os contribuintes de hoje precisam ter toda a segurança de que, quando, no futuro, forem necessitar de benefícios pelos quais contribuíram, tenham um bom atendimento e a regularidade do pagamento devido.

IIO senhor assumiu a pasta com uma crise no INSS, agravada por uma greve. Como resolver definitivamente o problema das filas?
NM – As filas são resultado de um modelo que concentrou muitos serviços e a própria prestação de informações aos segurados nas agências da Previdência. Houve ainda um subinvestimento histórico no sistema previdenciário. Não é um problema deste governo, já vem dos anteriores.
É possível, portanto, minimizar as filas ao melhorar o fluxo de informações para os beneficiários. Quase metade das pessoas nas filas está em busca de informações ou de atendimento de auxílio-doença e, principalmente, de perícia médica. A outra parte pode ser reduzida e eventualmente eliminada com um processo de reorganização do trabalho nas agências.

II – Outro mal crônico é a corrupção no sistema. Por que é tão difícil criar um sistema que impeça fraudes?
NM – Fraudes são um fenômeno que não assola apenas a Previdência Social, mas a todo e qualquer sistema. Não somente no Brasil. É importante, em primeiro lugar, termos bem claro que se trata de uma corrida permanente, de um esforço constante dos sistemas previdenciários contra os fraudadores. O aparelho previdenciário precisa estar à frente do fraudador, tem que se prevenir contra a eventualidade da próxima fraude.
Além de combater as já existentes, temos que nos antecipar nesse duelo, procurando identificar e eliminar vulnerabilidades atuais e potenciais que existem dentro dos sistemas.

II – Quais medidas já foram tomadas nesse sentido?
NM – Entendo que o combate à fraude não é um esforço que se faz uma única vez. Ele deve ser permanente. A Previdência vem operando nisso desde o início deste governo com a expansão da força-tarefa de uma equipe para dezoito. Hoje, temos fiscais em dezoito estados em cooperação com a Polícia Federal e o Ministério Público, procurando identificar as fraudes. Temos igualmente concentrado esforços de gestão de riscos internos no sistema previdenciário. Cabe, ainda, mencionar a importância dos Conselhos de Previdência Social (CPS), formados junto às gerências executivas, que têm em sua composição membros da sociedade civil, trabalhadores, empregadores e aposentados, e que recebem a prestação de contas dos respectivos gerentes executivos, no acompanhamento da gestão previdenciária.

II – Mesmo assim, sempre alguém burla o sistema de informática, não?
NM – É importante destacar que as bases de dados da Previdência Social, que permitem a clara identificação, em alguns casos, dos beneficiários ou o inequívoco cruzamento com outras informações, vêm trabalhando com elementos insuficientes há décadas. Para corrigir a defasagem, estamos empenhados no projeto do Censo dos aposentados e pensionistas, que começa a partir deste mês.

II – Como o sr. avalia a criação da Receita Federal do Brasil, resultado da unificação da Receita Previdenciária com a Receita Federal?
NM – A Receita Federal do Brasil é uma inovação institucional ao meu ver extremamente importante para a Previdência Social, para o Estado e a sociedade brasileira. Com a fusão das duas estruturas de arrecadação e fiscalização, é possível obter sinergias extremamente importantes: racionalizar a estrutura do Estado, aumentar a qualidade dos serviços prestados e reduzir o custo para o próprio contribuinte. Ao mesmo tempo, potencializa a capacidade de identificar, por meio de cruzamentos de dados, sonegadores, fraudadores, de agilizar a cobrança das dívidas devidas à Previdência em função de contribuições não recolhidas no passado, por meio da junção de diversas ferramentas.

II – O sr. poderia descrever o perfil da empresa que mais deixa de recolher os benefícios de seus empregados?
NM – Embora existam empresas e empregadores faltosos em todos os segmentos econômicos e em todos os grupos de perfil de empresas, as informações colhidas a partir das bases de dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], por exemplo, permitem identificar uma maior dificuldade por parte das pequenas empresas em contribuírem de forma regular para a Previdência Social. As dificuldades que temos são maiores para empresas que têm tamanho mais reduzido. Nesse sentido, já existe, por exemplo, a proposta do presidente Lula, consubstanciada no Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 210, em tramitação na Câmara dos Deputados, que cria uma forma simplificada de contribuição para os empresários da faixa inferior, inclusive, a faixa de faturamento do próprio Simples.

II – É mito que, se a Previdência for muito rigorosa na cobrança dos repasses acumulados, provocaria uma onde de quebradeira nas empresas?
NM – Se há um mito, ele não se justifica na prática. Estamos com um esforço aumentado de fiscalização e de cobrança de dívidas em relação às empresas, sem qualquer sintoma de anormalidade nesse sentido. Uma prova disso é que em relação ao ano passado, a nossa recuperação de créditos vai subir de menos de R$ 5 bilhões para mais de R$ 7 bilhões, de 2004 para 2005, ante um aumento semelhante de 2003 para 2004. Então a cobrança de dívidas para com a Previdência Social tem sido reforçada, de maneira acentuada.

II – A nova Lei de Falências traz algum prejuízo no sentido de buscar os recursos devidos da Previdência?
NM – A nova Lei de Falências constrói mecanismos para a recuperação de empresas, o que é positivo para a Previdência Social. Eu não entendo como prejuízo. Muito pelo contrário. Penso que a preservação do emprego e da folha salarial dessas empresas e o aumento da massa salarial sobre a qual se contribui são fatores importantes para o fortalecimento da Previdência Social no futuro.

II – Alguns fundos de pensão estiveram envolvidos em escândalos recentes, como dos bancos Santos, BMG e Rural. A SPC errou ao não identificar esses problemas?
NM – No governo Lula, a SPC tem feito grandes avanços. Foi ampliado o quadro de auditores, criada a área de fiscalização indireta, estruturado um novo regime repressivo, além de normas de controles internos, que passaram a valorizar o Conselho Deliberativo e especialmente o Conselho Fiscal da entidade. No entanto, esse é um processo. Tenho recebido relatos da SPC sobre muitas investigações que estão em curso. Um trabalho de prospecção e de inteligência pode levar meses. Além disso, a SPC não fiscaliza somente os investimentos, mas também o passivo atuarial, sem contar toda a parte de licenciamento prévio de regulamentos e estatutos dos fundos de pensão. É preciso destacar, porém, que a responsabilidade pela boa gestão dessas entidades, que são de direito privado, é, antes de tudo, dos seus próprios gestores, e não do poder público.

II – O Estado tem oferecido condições para o exercício desse trabalho?
NM – O Estado tem oferecido um aparato regulatório que consideramos adequado. Há normas do Conselho Monetário Nacional que estabelecem limites para as aplicações. Existem regras de governança e de gerenciamento de riscos, aprovadas em 2004 pelo Conselho de Gestão da Previdência Complementar. A SPC aprovou instrução que define procedimentos para os auditores de fundos de pensão, como a exigência de divulgação dos custos dos planos. Poderíamos ter dado um salto institucional nesse processo, com a criação da Previc (Superintendência Nacional da Previdência Complementar), mas a MP 233 – que contou com o meu apoio, à época no Planejamento – não foi aprovada no Congresso Nacional.

II – A fiscalização tem sido adequada, uma vez que a Controladoria-Geral da União (CGU) está auditando na SPC a fiscalização dos fundos?
NM – A auditoria da CGU na SPC é um trabalho que se insere no âmbito de suas atribuições institucionais normais, dentro de uma programação, como, aliás, foi realçado pela própria CGU em nota oficial. Trata-se de um trabalho de controladoria, que tem sido fortalecido no governo Lula. Isso não quer dizer que haja qualquer juízo negativo sobre a atuação da SPC.
Aliás, a secretaria tem buscado uma integração maior com a CGU, principalmente no que se refere ao envolvimento das empresas estatais como patrocinadoras de fundos de pensão.

II – O que tem sido feito para ampliar os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPSs)?
NM – Temos fortalecido os regimes dos estados e municípios por meio de capacitação, seminários de difusão sobre as novas regras advindas da Reforma de 2003 e da sua legislação. Ao mesmo tempo, temos disponibilizado uma série de serviços de informações estatísticas por parte da SPS (Secretaria de Previdência Social) e promovido a capacitação de servidores de estados e municípios. É preciso chamar a atenção, entretanto, para o fato de que a opção por um regime próprio implica em um estado ou município assumir uma série de responsabilidades de longo prazo com a boa gestão e com a sustentabilidade dessa previdência social. Portanto, não é em qualquer situação que é recomendada.

II – Qual é o quadro desse setor hoje?
NM – Bastante diferente. Tivemos a possibilidade de fazer essa alteração em outubro de 2004. A Resolução 3.244 foi fruto de uma negociação com os próprios estados, no âmbito do Conselho Nacional dos Dirigentes dos Regimes Próprios de Previdência Social (Conaprev). É óbvio que, como fruto de uma negociação, acredito que tenha respaldo também dos RPPSs. O viés conservador em termos dos investimentos dos regimes próprios de Previdência se deve exatamente ao fato de que um perfil extremamente liberal permitiria um maior número de fraudes e até a própria experiência do Banco Santos demonstrou o que a liberalidade em termos de instrumentos pode gerar.

IIHá deficiência na Lei dos regimes próprios?
NM – A Resolução nº 3.244 entrou em vigor em novembro de 2004, por coincidência alguns dias após a intervenção no Banco Santos. Se tivesse em vigor antes, muitos dos estados e municípios que tiveram prejuízos em termos de investimentos não o teriam tido. A norma teria coibido aqueles investimentos, que acabaram sofrendo perdas no âmbito do Banco Santos. Portanto, não concordo com a idéia de que a legislação tenha sido desenhada de forma frágil e permissiva. Mas é óbvio que a Lei, no que toca aos investimentos dos RPPSs, pode ser permanentemente aperfeiçoada, com novos instrumentos de investimento, à medida que nós tenhamos condições de garantir o seu grau de segurança, de estabilidade no longo prazo, que é o horizonte dos RPPSs, e blindar esses instrumentos de investimentos contra eventuais movimentações de curto prazo, tanto de agentes econômicos quanto de agentes políticos.