Bolívia irá nacionalizar sistema de previdência

Edição 195

A proposta é de retornar ao sistema solidário de partilha e estender os
benefícios para os trabalhadores rurais

Depois de nacionalizar os hidrocarbonetos do país, em 2006, agora o
governo de Evo Morales irá tirar das mãos da iniciativa privada a
previdência boliviana. No início de agosto, o governo federal extinguiu as
administrações privadas de fundos de pensão, que administram mais de
US$ 3 bilhões em contribuições, e assinou um acordo com a Central
Obrera Boliviana (COB), que organizou protestos reivindicando tal medida.
Para decidir qual será a nova forma de financiamento do sistema, governo
e COB criaram uma comissão e devem apresentar uma proposta ao
Congresso ainda este mês, quando o prazo estipulado de 45 dias
termina. A idéia é criar uma agência estatal, que administrará os recursos
do sistema – que passará a ser de repartição simples e também atenderá
à área rural – e eliminar a atual administração privada do grupo suíço,
Zurich Financial Services, e do banco espanhol Banco Bilbao Vizcaya
Argentaria.
Há divergências entre as partes quanto ao novo sistema. A COB quer
confiscar os R$ 3,3 bilhões da poupança individual de 13,3% da população
que contribui para o sistema de previdência (o equivalente a pouco mais
de um milhão de pessoas), proposta, essa, à qual o governo é contra. A
Central quer, ainda, a diminuição da idade para o recebimento da
aposentadoria em dez anos.
“A nacionalização da previdência não é tão problemática quanto a dos
hidrocarbonetos, pois não envolve ativos físicos, assim não há litígios”,
afirma Mariam Dayoub, estrategista-chefe da Arsenal Investimentos, que
trabalhou durante seis anos no Banco Mundial, parte dos quais dedicou ao
estudo dos sistemas previdenciários na América Latina.
Para ela, a decisão é um regresso, pois não irá atender ao principal
objetivo da nacionalização, que é aumentar a cobertura previdenciária no
país. “Dificilmente haverá o aumento da cobertura sem competição de
mercado”, avalia Mariam. Ela destaca, ainda, que a gestão única não
deverá alterar o conservador portfólio de investimentos. “Os investimentos
estão concentrados em ativos do governo e o mercado de capitais é pouco
desenvolvido.”
De acordo com Mariam, para que um maior número de pessoas tivesse
acesso ao sistema seriam necessários investimentos, como a construção
de novos postos de atendimento, o que sairia muito caro para um país
com Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 11 bilhões. “O país está passando
por um momento difícil, de desaceleração do PIB, inflação alta e
diminuição de empregos. Não há incentivo para isso.”
Além disso, ainda haverá um conflito de interesses, já que a nova agência
que administrará os recursos da previdência e o órgão que a
supervisionará serão, ambos, ligados ao Poder Executivo. “Corre-se o risco
dos recursos previdenciários serem usados para financiar o governo”,
adverte Mariam.
A proposta de uma administração única com o sistema de repartição
simples remonta ao Sistema Solidário de Contribuição, vigente na Bolívia
há 11 anos. Na década de 1990, estudos do governo apontavam que esse
sistema não era sustentável e que uma reforma era necessária.
Inspirando-se na lei que reformou, em 1981, o sistema de pensões no
Chile, em 1996 o governo de Sanchez de Lozada (1993-1997) eliminou o
sistema de benefício definido e instituiu o de capitalização, cuja
administração dos recursos foi passada para as administradoras de fundos
de pensão (AFPs).
A contribuição individual foi definida em 12,21% do salário, dos quais 10%
são para a aposentadoria (metade pago pela empresa), 1,71% para
seguro por morte e invalidez e 0,5% é a taxa de administração da AFP.
O governo dividiu o território boliviano em três e deu a zona norte e
metade da zona central para uma administradora e a zona sul e a outra
metade da central para a outra, de forma que cada uma ficasse com 50%
do mercado. Segundo Mariam, para que o custo fixo do sistema não fosse
alto, o governo decidiu abrir o mercado para poucas administradoras,
evitando a entrada de pequenas empresas. “Muitas AFPs acabariam com a
economia de escala”, afirma a estrategista-chefe.
Também foi criado o fundo Bonosol para pagar pensões para as pessoas
com mais de 65 anos. Para capitalizar esse fundo, o governo privatizou
50% das cinco maiores empresas da Bolívia e colocou os recursos no
fundo.
Contudo, já no começo dos anos 2000, o sistema começou a ser
questionado. A recessão por que passou a economia entre os anos 1999 e
2002, quando o país sofreu os reflexos das crises asiática (1999) e
argentina (2001), além da desaceleração da economia mundial e os
efeitos do El Niño, provocou demissões em massa, o que,
conseqüentemente, diminuiu significativamente os aportes no sistema
previdenciário. “Se questionou o custo e a sustentabilidade do sistema e
houve uma nova intenção de reforma”, lembra Mariam. Intenção, essa,
que foi reforçada com a eleição de Evo Morales, com uma plataforma de
governo socialista.