Edição 166
Passando da paralisia ao avanço acelerado
É com uma mistura de nostalgia e saudades, que nos lembramos dos anos
em que a economia crescia neste país ‘a taxas vigorosas, até mesmo
“milagrosas”, como se convencionou chamar. Infelizmente, só aqueles que
têm trinta anos ou mais – e experimentaram pelo menos o último
“espasmo” de crescimento do governo Geisel – sabem o que é
“crescimento acelerado” no Brasil. No pós-guerra, até meados dos anos
setenta o Produto Interno Bruto cresceu a uma taxa média de cerca de 7%
ao ano até 1973, quando os choques do petróleo interromperam
abruptamente este processo. De lá para cá, tivemos anos de inflação
elevada, crises no balanço de pagamentos e finalmente hiperinflação, no
início dos anos noventa. Como seria de se esperar, isto tudo resultou num
crescimento muito aquém do potencial e do que seria necessário para
“amortizar” a dívida social que se contraiu nos anos de crescimento mais
rápido. De fato, entre 1981 e 2004, a economia brasileira cresceu a uma
taxa média anual em torno de 2%, o que é bastante inferior, à média dos
países semi-industrializados no período.
A reconstrução do equilíbrio macroeconômico (iniciada com o plano Real e
consolidada com a flutuação cambial) e o ajuste fiscal iniciado em 1998-
1999 trouxeram uma substancial melhora nos fundamentos permitindo, ao
menos, a superação de alguns obstáculos básicos que impediam o país de
realizar algum crescimento. Mas, ainda existem dificuldades enormes que
precisam ser transpostas se quisermos inaugurar um novo ciclo de
crescimento sustentável. O Brasil já está hoje em condições de manter o
ritmo de crescimento atual do PIB, em torno de 3,5% ao ano (o triênio
2004-06 deverá registrar uma média próxima de 4% aa) o que representa
um ganho significativo em relação a média de 1981-2004. Contudo, o
crescimento do PIB potencial ainda é baixo, se comparado a outros países
emergentes. O novo desafio reside, portanto, em ampliar a capacidade de
crescimento da economia e para isto não há como refutarmos uma
verdadeira obviedade macroeconômica que alguns ainda não querem
aceitar: crescimento requer investimento, que por sua vez requer
poupança, o que exige, infelizmente, uma nova onda de reformas
estruturais.
A partir desta avaliação, podemos vislumbrar, essencialmente, três
cenários para a evolução da economia brasileira no curto prazo, nos
próximos dois-três anos. A primeira possibilidade, mais desejável sobre
todos os aspectos, seria a de um Avanço acelerado, o país mantendo um
“mix” de política macro consistente e progredindo na agenda de reformas
estruturais de forma a possibilitar um aumento da poupança e do
investimento: redução da carga tributária com a criação de um regime fiscal
sustentável no longo-prazo – ao contrário do atual – uma nova onda de
reforma previdenciária e melhoria do marco regulatório, levando à
ampliação da poupança e dos investimentos em infra-estrutura, educação,
saúde e saneamento. Neste contexto, poderíamos nos tornar “investment-
grade” já em 2008, no segundo ano do próximo governo. No entanto, com
o acirramento das disputas políticas, este não é o cenário mais provável
para os próximos dois anos. Para sermos prudentes, deveríamos assumir
que em 2006 e 2007, na melhor das hipótese teríamos um cenário de
Paralisia que poderia ou não ser desanuviado a partir de alguma
composição pós-eleitoral, que dificilmente geraria resultados concretos, do
ponto de vista estrutural, antes de 2009. Não imaginamos aqui nenhuma
ruptura significativa, apenas um atraso no avanço estrutural gerado pelo
acirramento da “luta política”. Sem a possibilidade de uma queda mais
significativa da relação dívida-PIB e da implantação de um regime fiscal de
longo prazo, o grau de investimento seria algo para obtermos em 2009,
talvez 2010. Finalmente, não podemos eliminar inteiramente a
possibilidade de uma ruptura devido a uma “recaída populista”, sendo
que, neste caso, torna-se difícil desenhar uma trajetória para os principais
indicadores macroeconômicos. Seguramente, a Argentina de Kirschner será
muito útil para ilustrarmos esta terceira possibilidade que seria, de resto,
uma volta ao passado 25 anos depois.
De fato, o que nos parece hoje ser um objetivo de médio prazo desejável e
plenamente alcançável é tentarmos migrar da Paralisia para o Avanço
acelerado, a partir de meados de 2007, descartando obviamente, a
hipótese bastante infeliz que se abandone a racionalidade macro, a la
Kirschner. Para isto, precisamos de um lado que os ventos lá fora não se
transformem em tempestades e que sejamos capazes de aglutinar forças,
domesticamente, para superarmos os difíceis obstáculos estruturais que
ainda temos.
No “front” externo, cumpre observar que dificilmente teremos um biênio
tão excepcionalmente favorável como 2004-2005, com crescimento forte e
taxas de juros baixas resultando em ampla liquidez e baixo nível de
aversão ao risco no mundo industrializado, especialmente, nos países
exportadores de poupança da Ásia. Esperamos em algum momento no
próximo ano, uma acomodação deste crescimento decorrente, entre outras
coisas, de uma elevação das taxas de juros globais, o que implicaria numa
redução gradual da liquidez e alguma elevação na aversão ao risco,que
seria plenamente “absorvível” pelos países emergentes. Neste contexto,
imaginamos que os juros básicos nos EUA deverão ficar entre 4,5% e 5%,
enquanto o rendimento dos títulos do Tesouro dos EUA com prazo de 10
anos deveria se acomodar num patamar não muito acima de 5%. Assim,
teríamos uma conjuntura internacional menos favorável do que a vigente,
mas ainda bastante amigável.
Na verdade, o que nos parece ser o maior obstáculo a esta “migração para
o progresso”, se assim pudermos designar, é a dificuldade política em
criarmos condições para um avanço institucional que permita incrementar
significativamente o nível de poupança doméstica. Como salientado, o
crescimento da capacidade produtiva depende de uma elevação do
investimento agregado na economia, que por sua vez só se materializará
se lograrmos elevar o nível de poupança. Todos os países que
experimentaram um rápido crescimento, desde o século XIX, tinham um
elevado nível de poupança doméstica. Os Asiáticos no pós-guerra, além de
taxas de poupança na faixa de 30-40% do PIB, fizeram um vultoso
investimento não só em capital fixo mas, sobretudo, em capital humano.
No Brasil, alguns estudos recentes têm indicado que, para crescermos de
forma sustentada, a uma taxa maior do que 5% ao ano, precisaríamos de
um nível de poupança total de 25% do PIB. Como nos tornamos
profundamente avessos à poupança externa após a crise de 1998-1999,
este esforço deverá ser integralmente feito no “front” doméstico, o que
significa elevar a taxa de poupança interna em cinco pontos percentuais do
PIB, algo nada trivial (assumindo, obviamente, que ao menos não
continuemos a exportar poupança, via superávits na conta corrente).
Ora, não é preciso nenhuma “genialidade” especial, para concluirmos que é
virtualmente impossível que isto ocorra com o atual regime fiscal, lato-
senso, incluindo aqui as despesas com seguridade social. Conseguimos, de
fato, avançar muito nos dois últimos governos, vis-a-vis o caos que se
anunciou em 1998-1999, mas apenas no sentido de alcançar um equilíbrio
fiscal de curto prazo, que é extremamente frágil, insustentável no longo
prazo e completamente incompatível com um processo de crescimento
acelerado. O Brasil tem hoje uma das maiores cargas tributárias do planeta
– nos aproximamos perigosamente dos 40% do PIB – que tem sido
elevada nos últimos dois governos para financiar gastos correntes
obrigatórios que só fizeram se elevar desde a implementação do Plano
Real, saindo de 24% do PIB em 1994 para cerca de 32% do PIB, em 2004.
Faz-se mister reconhecer todavia que mudar um regime caracterizado por
uma base de arrecadação limitada e alíquotas elevadas para outro com
alíquotas menores e base mais ampla, gerando uma carga tributária
menor em relação ao PIB, não é uma operação sem riscos. É como saltar
de um barco em alto mar e nadar até outro muito mais veloz, mais
potente, mas com um risco da travessia a nado. Por isto torna-se
absolutamente indispensável que se criem algumas salvaguardas para a
travessia, quais sejam, as reformas que permitam de um lado um controle
mais efetivo do gasto obrigatório em geral, particularmente na área
previdenciária e também a redução das vinculações orçamentárias,
permitindo que se abra espaço para que se priorize o investimento público,
particularmente em infra-estrutura, sobre o gasto público corrente. Só
assim, conseguiremos quebrar o ciclo vicioso e migrar de um equilíbrio
precário com crescimento baixo, investimento baixo e pouca poupança para
um outro equilíbrio com crescimento alto e investimento elevado resultando
de uma expansão da poupança. Para isto há que se ter muito mais do que
vontade política: é preciso, sobretudo, muita legitimidade e uma
capacidade singular de aglutinar forças contraditórias em torno de um
objetivo maior sem o qual não conseguiremos remover os obstáculos que
ainda nos impedem de inaugurar este novo ciclo.
Demosthenes Madureira de Pinho Neto é vice-presidente do Unibanco